ARTESANATO DE COURO
TRADIÇÃO SECULAR EM VILA CAMPOS
Manufatura
de arreios é ofício herdado
dos antigos donos da povoação
Pedro Paulo Paulino
Fábio Daniel em sua oficina |
No
sertão, o transporte motorizado tomou quase por inteiro o lugar antes ocupado pelo
cavalo bom de sela. Mesmo
assim, em Vila Campos, interior de Canindé, uma tradição é mantida há quase século: a manufatura de arreios de couro. Na Selaria Campos, o artesão Fábio
Daniel conta que a confecção de uma peça pode levar até mais de uma semana,
pois cada etapa da obra depende do trabalho exclusivamente manual, do
conhecimento da técnica e também de criatividade. Na sua oficina, o único
equipamento sofisticado que se nota é um motor elétrico adaptado a uma máquina
de costurar antiga. A matéria-prima é o couro de boi curtido. O arção, que é o arcabouço da sela, é feito de
cumaru. De metal, apenas os estribos e pequenos acessórios decorativos. Segundo
Fábio, uma sela é quase toda costurada a mão. E para os fregueses mais
exigentes, as abas da sela são bordadas a capricho, o que demanda mais tempo no
acabamento. As selas de montaria produzidas por ele comumente são do tipo consagrado
pelo vaqueiro nordestino. Raramente, diz, há encomenda para o selote usado em
cavalos de corrida. O ofício que Fábio Daniel aprendeu ainda menino é uma característica
cultural de Vila Campos.
Pedro Silva |
PEDRO SILVA –
Um dos pioneiros desse ofício foi Pedro Paulino Viana, patriarca de Campos
Velho e reconhecido como artesão dos melhores entre vaqueiros, fazendeiros e
amantes da vida de gado. Seus aprendizes foram os próprios filhos, Enésio,
Antonio, José e Cosme, além de um primo, Alfredo Paulino Ferreira. A oficina de
seu Pedro Silva, como era conhecido, funcionava num pavimento ao lado de sua
casa – que é por sinal um dos prédios mais antigos da povoação, depois da
capela de São Roque. Com sua serenidade habitual, ele fabricava selas e outros
arreios como uma atividade recreativa, haja vista que foi criador e agricultor
destacado nos sertões de Canindé. Quando ainda se plantava algodão no Ceará, notabilizou-se
também entre os produtores do chamado ouro-branco. E foi um dos primeiros donos
de caminhão desta redondeza, embora para o passeio jamais tenha faltado com um
cavalo marchador. Somados à habilidade de artesão, seus dons artísticos
afloravam com freqüência, pois nele habitava sem dúvida um poeta.
Alfredo Ferreira |
Era
costume de seu Pedro Silva, nas horas de descanso, reunir familiares e vizinhos
no longo alpendre da moradia, para os quais lia ou recitava de cor histórias em cordel. Famosas pelejas de cantadores de viola,
imaginárias ou verídicas, ele trazia bem guardadas na memória preciosa. Sua
coleção de folhetos era acondicionada numa bolsa de palha de carnaúba,
pendurada no armador do quarto de dormir. Era dali que ele puxava clássicos da
literatura popular. “A chegada de Lampião no inferno”, “Peleja de Cego Aderaldo
com Zé Pretinho do Tucum”, “Coco Verde e Melancia”, “A vida de Cancão de Fogo e
seu testamento” e tantos outros títulos memoráveis dos melhores autores
cordelistas. Autodidata, lia corretamente, com voz melodiosa, pausando cada
verso e cada estrofe no momento preciso. E todos o escutavam com muita
satisfação. A mesma satisfação com que o ouviam cantarolar velhas modinhas. Por
tudo isso, o seu local de trabalho era um espaço onde o cheiro do couro
curtido misturava-se a um aroma de poesia. Sertanejo bom e amigo, viveu 86 anos.
Chico Daniel |
CHICO DANIEL –
Já do outro lado da povoação ficava a oficina de couro de Francisco Paulino
Daniel, patriarca da vila de Campos Novo. Seu sobrado foi o primeiro erguido na
localidade e ali ele se estabeleceu, tornando-se também reconhecido como artífice
de sela dos mais admirados no seu tempo. Era de uma índole irônica, e quase
tudo que dizia tinha dose certa de humorismo. Ao contrário do ambiente lírico
da oficina de Pedro Silva, as paredes internas do sobrado de Chico Daniel eram coloridas
com gravuras de beldades, insinuando nele, sem outra conotação, um bom gosto
fescenino ousado para a época.
Fº Daniel Filho |
As
selas manufaturadas por Chico Daniel tinham fregueses cativos nos municípios de
Canindé, Quixadá, Boa Viagem e até nos Inhamuns, com encomendas também da
Capital. Ao lado do seu sobrado, ficava o “Hotel Campos”, comandado pela esposa
Laura. Foi também comerciante e proprietário de um caminhão-misto de horário. Os
filhos homens quase todos aprenderam o ofício de trabalhar com o couro. O
último, Francisco Daniel Filho, morreu em fins de 2012, mas deixou em boas
mãos, com o primogênito Fábio, o compromisso de honrar a técnica. Bisneto de Pedro Silva e neto de Chico Daniel, Fábio herdou em dose dupla a tradição dos
antigos seleiros de Vila Campos. Os pioneiros, todos já se foram. A oficina de
Pedro Silva consumiu-se com o tempo. Mas a Selaria Campos, à margem da BR-020,
continua a tradição e com clientela certa. Apenas migrou do velho sobrado para
o térreo do edifício. Se não se ouve mais o cantarolar baixinho de seu Pedro
Silva nem os ditos chistosos de seu Chico Daniel, a memória deles, todavia, de
alguma forma é preservada.
Selaria Campos |
Parabéns pelo blog!!
ResponderExcluirArtigo lembrou-me agora que convivi toda infância com uma arte de couro similar, aqui em casa, aprendi pouco, por ser mais apto à contemplação que à presteza e agilidade, exigências para bom artesão. Mas em tudo é comparável: o cheiro de sola, as facas amoladas, os acessórios etc. Interessante saber que existe toda uma investigação acadêmica em torno dos acessórios e roupas de couro dos cangaceiros. E mesmo a história do nosso querido Ceará tem uma fase econômica toda lastreada em couros, charqueda. Houve aqui uma recuperação, no que vc fala, dessa arte, hoje tão pouco divulgada. Para mim foi nostálgico.
ResponderExcluirParabens pela bonita e emocionante matéria.Saudade destas pessoas queridas.As fotos estão ótimas nos trazendo lembranças saudosas dos Campos de ontem.Ainda bem que o Fábio está dando continuidade a este ofício já quase esquecido nos dias de hoje. Temos sorte de ter você que nos presenteia com divulgações tão importantes para não esquecermos os valores de nossa gente.
ResponderExcluirParabéns pelo seu blog, pela sua iniciativa de mostrar as tradiçoes de campos!
ResponderExcluirExcelente reportagem do Pedro Paulo Paulino resgatando o sertão de outrora até onde desaguam os seus descendentes. Parabéns!
ResponderExcluirPoeta Pedro Paulo Paulino maravilhosa reportagem.
ResponderExcluirMuito bom relembrar as nossas raízes.
Meu saudoso avô Chico Daniel muito bem colocado nas suas considerações.