domingo, 13 de janeiro de 2013


ARTESANATO DE COURO
TRADIÇÃO SECULAR EM VILA CAMPOS 

Manufatura de arreios é ofício herdado
dos antigos donos da povoação

Pedro Paulo Paulino

Fábio Daniel em sua oficina
No sertão, o transporte motorizado tomou quase por inteiro o lugar antes ocupado pelo cavalo bom de sela. Mesmo assim, em Vila Campos, interior de Canindé, uma tradição é mantida há quase  século: a manufatura de arreios de couro. Na Selaria Campos, o artesão Fábio Daniel conta que a confecção de uma peça pode levar até mais de uma semana, pois cada etapa da obra depende do trabalho exclusivamente manual, do conhecimento da técnica e também de criatividade. Na sua oficina, o único equipamento sofisticado que se nota é um motor elétrico adaptado a uma máquina de costurar antiga. A matéria-prima é o couro de boi curtido.  O arção, que é o arcabouço da sela, é feito de cumaru. De metal, apenas os estribos e pequenos acessórios decorativos. Segundo Fábio, uma sela é quase toda costurada a mão. E para os fregueses mais exigentes, as abas da sela são bordadas a capricho, o que demanda mais tempo no acabamento. As selas de montaria produzidas por ele comumente são do tipo consagrado pelo vaqueiro nordestino. Raramente, diz, há encomenda para o selote usado em cavalos de corrida. O ofício que Fábio Daniel aprendeu ainda menino é uma característica cultural de Vila Campos.

Pedro Silva
PEDRO SILVA – Um dos pioneiros desse ofício foi Pedro Paulino Viana, patriarca de Campos Velho e reconhecido como artesão dos melhores entre vaqueiros, fazendeiros e amantes da vida de gado. Seus aprendizes foram os próprios filhos, Enésio, Antonio, José e Cosme, além de um primo, Alfredo Paulino Ferreira. A oficina de seu Pedro Silva, como era conhecido, funcionava num pavimento ao lado de sua casa – que é por sinal um dos prédios mais antigos da povoação, depois da capela de São Roque. Com sua serenidade habitual, ele fabricava selas e outros arreios como uma atividade recreativa, haja vista que foi criador e agricultor destacado nos sertões de Canindé. Quando ainda se plantava algodão no Ceará, notabilizou-se também entre os produtores do chamado ouro-branco. E foi um dos primeiros donos de caminhão desta redondeza, embora para o passeio jamais tenha faltado com um cavalo marchador. Somados à habilidade de artesão, seus dons artísticos afloravam com freqüência, pois nele habitava sem dúvida um poeta.
Alfredo Ferreira
Era costume de seu Pedro Silva, nas horas de descanso, reunir familiares e vizinhos no longo alpendre da moradia, para os quais lia ou recitava de cor histórias em cordel. Famosas pelejas de cantadores de viola, imaginárias ou verídicas, ele trazia bem guardadas na memória preciosa. Sua coleção de folhetos era acondicionada numa bolsa de palha de carnaúba, pendurada no armador do quarto de dormir. Era dali que ele puxava clássicos da literatura popular. “A chegada de Lampião no inferno”, “Peleja de Cego Aderaldo com Zé Pretinho do Tucum”, “Coco Verde e Melancia”, “A vida de Cancão de Fogo e seu testamento” e tantos outros títulos memoráveis dos melhores autores cordelistas. Autodidata, lia corretamente, com voz melodiosa, pausando cada verso e cada estrofe no momento preciso. E todos o escutavam com muita satisfação. A mesma satisfação com que o ouviam cantarolar velhas modinhas. Por tudo isso, o seu local de trabalho era um espaço onde o cheiro do couro curtido misturava-se a um aroma de poesia. Sertanejo bom e amigo, viveu 86 anos.
Chico Daniel
CHICO DANIEL – Já do outro lado da povoação ficava a oficina de couro de Francisco Paulino Daniel, patriarca da vila de Campos Novo. Seu sobrado foi o primeiro erguido na localidade e ali ele se estabeleceu, tornando-se também reconhecido como artífice de sela dos mais admirados no seu tempo. Era de uma índole irônica, e quase tudo que dizia tinha dose certa de humorismo. Ao contrário do ambiente lírico da oficina de Pedro Silva, as paredes internas do sobrado de Chico Daniel eram coloridas com gravuras de beldades, insinuando nele, sem outra conotação, um bom gosto fescenino ousado para a época.
Fº Daniel Filho
As selas manufaturadas por Chico Daniel tinham fregueses cativos nos municípios de Canindé, Quixadá, Boa Viagem e até nos Inhamuns, com encomendas também da Capital. Ao lado do seu sobrado, ficava o “Hotel Campos”, comandado pela esposa Laura. Foi também comerciante e proprietário de um caminhão-misto de horário. Os filhos homens quase todos aprenderam o ofício de trabalhar com o couro. O último, Francisco Daniel Filho, morreu em fins de 2012, mas deixou em boas mãos, com o primogênito Fábio, o compromisso de honrar a técnica. Bisneto de Pedro Silva e neto de Chico Daniel, Fábio herdou em dose dupla a tradição dos antigos seleiros de Vila Campos. Os pioneiros, todos já se foram. A oficina de Pedro Silva consumiu-se com o tempo. Mas a Selaria Campos, à margem da BR-020, continua a tradição e com clientela certa. Apenas migrou do velho sobrado para o térreo do edifício. Se não se ouve mais o cantarolar baixinho de seu Pedro Silva nem os ditos chistosos de seu Chico Daniel, a memória deles, todavia, de alguma forma é preservada.

Selaria Campos

6 comentários:

  1. Artigo lembrou-me agora que convivi toda infância com uma arte de couro similar, aqui em casa, aprendi pouco, por ser mais apto à contemplação que à presteza e agilidade, exigências para bom artesão. Mas em tudo é comparável: o cheiro de sola, as facas amoladas, os acessórios etc. Interessante saber que existe toda uma investigação acadêmica em torno dos acessórios e roupas de couro dos cangaceiros. E mesmo a história do nosso querido Ceará tem uma fase econômica toda lastreada em couros, charqueda. Houve aqui uma recuperação, no que vc fala, dessa arte, hoje tão pouco divulgada. Para mim foi nostálgico.

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  2. Parabens pela bonita e emocionante matéria.Saudade destas pessoas queridas.As fotos estão ótimas nos trazendo lembranças saudosas dos Campos de ontem.Ainda bem que o Fábio está dando continuidade a este ofício já quase esquecido nos dias de hoje. Temos sorte de ter você que nos presenteia com divulgações tão importantes para não esquecermos os valores de nossa gente.

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  3. Parabéns pelo seu blog, pela sua iniciativa de mostrar as tradiçoes de campos!

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  4. Excelente reportagem do Pedro Paulo Paulino resgatando o sertão de outrora até onde desaguam os seus descendentes. Parabéns!

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  5. Poeta Pedro Paulo Paulino maravilhosa reportagem.
    Muito bom relembrar as nossas raízes.
    Meu saudoso avô Chico Daniel muito bem colocado nas suas considerações.

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