SOBRE COPA DO MUNDO E
OUTROS ASSUNTOS
Por Freitas de Assis*
O despertador tocando e o corpo não querendo
obedecer ao som que me acorda em horário um tanto “draconiano”, ficando mais cinco
minutos na cama, são evidências de que mais uma jornada de serviço terá início
logo mais um pouco depois do nascer do sol.
A chegada ao quartel, o encontro com os colegas que estão saindo de seus
turnos, os fatos pertinentes ao serviço e as ocorrências que chamaram mais a
atenção, são informações compartilhadas entre as equipes, além de alguma
eventual fofoca e brincadeiras ou mesmo uma bravata, permeiam o ambiente
deixando o serviço menos estressante. Após pegarmos nossos equipamentos,
armamento e apetrechos e ouvirmos as orientações e determinações do comando na
pessoa do fiscal de policiamento, seguimos enfim para o trabalho propriamente
dito de patrulhamento e policiamento ostensivo nas ruas de Canindé. Para cada
ocorrência e para cada vítima uma história poderia ser escrita sobre diferentes
ângulos e tentar explicar os pormenores que levaram àquela situação. Mas é
necessário confessar que às vezes me sinto com um enorme fardo sobre os ombros ou
como se tentasse enxugar gelo devido ao rumo que as ocorrências tomam. Já
nestes últimos dias de março e começo de abril, homicídios mancham de sangue as
crônicas policiais. Em 31 de março, cinquentenário do golpe de 1964, um duplo
homicídio no bairro João Paulo II deixa como vítima dois irmãos que tinham como
ocupação a prestação de serviços na área de segurança privada. E em 1º de abril,
um adolescente de 17 anos, conhecido pela prática de furtos na região do Centro
de Canindé, tem a vida ceifada por um homem identificado por “Lero”, um
ex-presidiário. Os motivos do crime estão envoltos em aura de mistério.
Cogita-se um crime passional, onde um parente da vítima poderia ter tido um
fortuito relacionamento com a companheira do homicida confesso, e este se
vingou em alguém da família, já que não encontrou o verdadeiro “Don Juan”.
Ao iniciarmos nossa íngreme missão, alguns
pormenores e certa rotina deixam-na um tanto tediosa e procuramos sempre manter
conversas sobre assuntos diversos para que o marasmo não se sobressaia a bordo
da viatura. A quantidade de dias que faltam para a Copa do Mundo, os gastos
excessivos desta e seus atrasos que porventura exponham o país ao ridículo, sem
mencionar as eventuais manifestações que venham a ocorrer durante tal evento,
vez por outra vêm à tona dentro da viatura. Sobre a Copa, fica difícil imaginar
outro país emergente, com uma democracia das mais desenvolvidas, com a economia
em franco desenvolvimento, mas que esbarra ainda em escândalos de corrupção e
tem um sistema jurídico ineficiente e até arcaico, com leis que mais beneficiam
quem as ultraja do que protege aos ultrajados, e ainda, dentre outros problemas,
o baixo investimento em educação e a falta de assistência à saúde para as
camadas mais baixas da população, frutos também da corrupção na política; e com
tantos paradoxos, investe milhões em obras para um evento desse porte, sem ter
a certeza de que o investimento terá algum resultado em médio e longo prazo. Óbvio
que não é só de conversa e passeio de Hilux, como muita gente já chegou a afirmar
que nosso trabalho é feito; seguimos patrulhando, observando e também recebendo
solicitações de ocorrências pelo COPOM. Uma abordagem a um suspeito, a consulta
de uma placa e o atendimento de uma ocorrência de violência doméstica, são
comuns e quebram nossa rotina. Infelizmente, os gastos da Copa do Mundo, como o
mais de um bilhão gastos no Itaquerão do Corinthians em tempo recorde, apesar
dos atrasos e acidentes de trabalho, em detrimento de obras de maior alcance
social, como a construção da Policlínica em nosso município, que há tempos já
deveria estar concluída, me fazem refletir que investimentos em saúde, saneamento
e infraestrutura, além de educação, fariam meu trabalho ser bem mais
simplificado. Porém a cada volta em bairros como Palestina, Cachoeira da Pasta
e Can, apenas para exemplificar, percebo que o trabalho será cada vez mais
difícil, em razão de que nestes e outros mais como o Canindezinho quase
abandonado pelo poder público, investimentos em serviços essenciais ao bom
desenvolvimento e evolução da sociedade ficam relevados a um segundo plano e
apenas em época de campanha política é que promessas que não são fantasiosas são
proferidas, mas são só promessas. Porém, uma obra de esgoto fica escondida, não
é inaugurada e não fica exposta para ser observada por todos, enaltecendo o
responsável por sua execução.
Um dia depois da morte do jovem de 17 anos que citei
antes, uma senhora aborda minha viatura na feira da Praça Azul e, já cansada da
impunidade reinante em nossos dias, comentou com surpresa e indignação, sobre
mais uma morte em Canindé e perguntou quem era. Respondi-lhe que era um jovem de
família carente, useiro na ‘’arte’’ de pequenos delitos. Não para minha
surpresa, a cidadã mudou de expressão, passando do espanto ao alívio dizendo:
que bom, era só mais um bandido; contudo não cogitou nem por um momento
tratar-se da vida de um ser humano, um adolescente, que é filho de uma mãe que
hoje chora. E este mesmo BANDIDO poderia ser neto dela. E mais, a sociedade de
um modo geral, vendo que a impunidade é uma constante, adota a máxima de que
bandido bom já nasce morto.
Seguindo na rotina de meu trabalho, quando chego a
brincar com amigos de fora do meu círculo profissional, dizendo que meu ofício
é viver de desgraça e confusões alheias, continuo atendendo ocorrências
diversificadas. Num dia é uma dupla armada de faca nas imediações da prefeitura,
depois um assalto à residência no bairro da Can, onde um casal de idosos com
sua filha, uma profissional liberal, acordam com três criminosos armados dentro
de casa e ficam satisfeitos em levar dois celulares. E em outro dia, a mais
comum das ocorrências, a violência doméstica. Desta vez é no bairro Cachoeira
da Pasta. Para chegar ao endereço, um verdadeiro raly, devido a precariedade
das ruas. No local, a vítima diz que seu ex-companheiro, com quem já trocara juras
de amor eterno, lhe ameaçara com um facão. Levamos vítima e acusado para a
delegacia, onde após uma conversa com os policiais de serviço, esta desiste de
mover qualquer ação contra seu ex-companheiro. Neste meio tempo, alguém de
dentro do xadrez me chama e o reconheço de pronto. Um jovem de menos de trinta
anos que conheço desde sua infância. No começo deste ano eu o detive por
violação de medida protetiva. Desta vez disse que foi preso preventivamente para
ser internado devido ao vício em cack. Disse estar esperançoso, tem vontade de
sair do pesadelo das drogas e que desde que chegou ao cárcere está “limpo”,
juntamente com outro usuário, preso por furtar uma moto outro dia na Rua
Euclides Barroso. “Vai procurar uma igreja, a palavra de Deus o libertará”,
afirmou. Pediu-me uma ajuda. Apenas algumas folhas de papel para concluir um
trabalho de artesanato. Atendo ao seu pedido. Algumas palavras e sinto que nem
tudo está perdido. Despeço-me de um jovem sorridente, com alegria no coração e
esperança de que dias melhores virão.
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*Cabo PM, colaborador do blog.
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