HUMBERTO DE CAMPOS – 133 ANOS
Pedro Paulo Paulino
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Obra escolhida de Humberto de Campos,
lançada em 1983 pela Opus Editora Ltda |
No dia 25 de outubro de 1886
nascia Humberto de Campos Veras, na então cidade maranhense de
Miritiba. Autodidata, foi poeta, contista e crítico literário. Mas se destacou como o cronista mais lido na década de 1920 e começo dos anos 30, na
imprensa do Rio de Janeiro, para onde mudou-se depois de trabalhar como caixeiro na bodega de um tio, na Parnaíba, Piauí. Menino pobre, órfão
de pai aos seis anos, descobriu o talento literário ainda em sua pequena Miritiba
que hoje se chama Humberto de Campos. Sua obra completa inclui crônicas, contos, poesia
e memórias. Aos 33 anos entrou para Academia Brasileira de
Letras. Também com o pseudônimo de Conselheiro XX, assinou escritos que atraíram
grande público. Humberto de Campos foi um dos escritores brasileiros mais lidos
em seu tempo e suas obras tornaram-se presentes nas bibliotecas de todo o País, algumas sendo adotadas em escolas públicas.
Sua notável popularidade e identificação com o espírito nacionalista
consagraram-no também na política, elegendo-se deputado federal pelo Maranhão.
O estilo conservador de escrever, embora numa linguagem bem acessível
e dinâmica, entrou em confronto com os ditames da Semana de Arte Moderna de 1922;
mesmo assim, conseguiu romper a fronteira entre o velho e o novo na literatura
feita no Brasil, e por isso seu nome ainda hoje encontra visibilidade. Segundo
Humberto de Campos Filho, que a exemplo do pai seguiu a carreira jornalística, ele
foi um homem que sempre viveu modestamente e inteiramente dedicado à vida literária.
Essa revelação está na obra escolhida de Humberto de Campos,
lançada em 1983 pela Opus Editora Ltda., composta de dez dos 40 volumes da bibliografia completa do escritor maranhense. No primeiro volume, Poesias completas,
Humberto de Campos Filho relata detalhes da vida do pai, reconhecido largamente
em seu tempo, pelo público e pela crítica, mas em constante preocupação com a notoriedade
no futuro. “Eu queria a vida para consagrá-la principalmente às minhas letras;
à realização de uma obra que trazia no pensamento. Isso tornou-se impossível. E
minhas horas são consumidas, todas, na conquista do pão de cada dia”, desabafa
Humberto de Campos em seu Diário secreto. Em 1986, foi lançado pela
Universidade Federal Fluminense – EDUFF, o livro O miolo e o pão, em
homenagem ao centenário de Humberto de Campos, com estudo crítico e
antologia do autor de O monstro e outros contos e um dos artistas nordestinos mais populares da
literatura brasileira. O título do livro alude a outra citação de Humberto: “Passou
a vida a insistir no comércio mais idiota deste mundo: vendia miolo da cabeça
para comprar miolo de pão” (Os Párias).
Humberto de Campos morreu no dia cinco de dezembro de 1934, aos 48 anos, deixando mulher e três filhos. Durante
muito tempo lutou contra uma doença rara chamada acromegalia, um distúrbio na
glândula hipófise. Problemas relacionados a cálculos na bexiga, no entanto,
foram a causa de sua morte. Depois de uma operação para retirada dos cálculos, Humberto
de Campos passou cerca de um ano urinando através de uma sonda implantada abaixo do umbigo. Depois desse período, uma nova cirurgia foi necessária para retirada da
sonda. O pavor da anestesia raquidiana, que o já traumatizara, fê-lo
exigir do médico uma anestesia geral, a despeito dos riscos que corria. Morreu de um ataque do coração enquanto eram
feitos os pontos da última sutura. Enxergou com profunda sensibilidade a vida, sendo-lhe poupado ver a própria morte.
CURIOSIDADES DE HUMBERTO DE CAMPOS
♦ Ainda
existe na cidade piauiense de Parnaíba o cajueiro centenário plantado por
Humberto de Campos e que inspirou uma de suas crônicas mais conhecidas.
♦ A
biblioteca de Humberto de Campos, com alguns milhares de volumes, foi vendida pela família do escritor para o governo do Estado do Maranhão, por 40
contos.
♦ Ainda depois de morto, Humberto de Campos foi motivo de grande polêmica. Por volta de 1941, novas publicações assinadas por ele, como “psicografadas” por Chico Xavier e editadas pela Federação Espírita do Rio de Janeiro, ganharam grande popularidade em todo o Brasil, fazendo com que a família do escritor movesse uma ação judicial reivindicando direitos autorais. A família perdeu a causa.
♦ No final
dos anos 50, o nome de Humberto de Campos é estampado novamente na imprensa. O anúncio
da publicação do seu Diário secreto causa alvoroço no meio intelectual
brasileiro. Mesmo assim, seu diário é publicado em fascículos pela revista O
Cruzeiro e depois editado em dois volumes.
♦ Na edição
de 3 de setembro de 2008, a revista Veja trazia em sua coluna “Radar”,
assinada pelo jornalista Lauro Jardim, a seguinte nota: “VENDE-SE UM FARDÃO - Serão leiloados nos próximos dias no Rio de
Janeiro o fardão e o espadim da Academia Brasileira de Letras usados pelo
escritor maranhense Humberto de Campos. O lance mínimo é de 30. 000 reais –
aliás, o mesmo preço de um fardão novinho em folha. A vestimenta tem quase
noventa anos e estava guardada desde 1934, quando Campos morreu. Quem tiver a
intenção de desfilar por aí fantasiado de imortal não deve perder a
oportunidade. Não é todo dia que se consegue um fardão original, até porque a
maioria dos acadêmicos é enterrada com seus trajes de gala”.
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RODOLFO
TEÓFILO
Humberto de Campos
QUANDO eu conheci Rodolfo
Teófilo, em 1906, tinha ele já sua grande barba toda grisalha. Era um homem
alto, magro, de rosto fino, que a barba tornava mais longo, e que vivia
enrolado em uma sobrecasaca negra, abotoada de cima a baixo. Fantasiado assim
de guarda-chuva, trazia, para evitar equívocos, outro guarda-chuva na mão. E eu
confesso que, desde que o vi pela primeira vez, senti uma comovida simpatia por
aquele homem, ao mesmo tempo que recebia uma impressão funda, e segura, da sua
capacidade de sonho e de fé. Um homem que anda de guarda-chuva no Ceará,
dispõe, necessariamente, de uma grande força de imaginação.
Era isso nos dias mais ingratos
da existência do romancista. Dividido em dois agrupamentos políticos, o Ceará
fervia, desde as praias do mar até às chapadas do Cariri, de entusiasmo e de
indignação partidárias. As penas dos jornalistas ciscavam, no papel branco dos
jornais, pondo à superfície dele, com as paixões próprias, os vícios ou
defeitos dos adversários. Sem descer às discussões pela imprensa, Rodolfo
Teófilo havia ficado, como eleitor, em oposição ao governo do Estado. O melhor
governo é, sempre, no Brasil, o do partido que vai subir. E Rodolfo Teófilo era
brasileiro e possuía, como todo brasileiro, espírito messiânico.
Essa definição de atitude custou,
todavia, caro, ao velho sonhador. Lente de História no Liceu Cearense, foi
removido imediatamente, como castigo, para a cadeira de grego. Debalde
protestou ele contra essa confusão, alegando, como coautor da “Botânica
Amorosa”, que as raízes gregas nada têm com as dos vegetais. O governo manteve
o ato. E Rodolfo Teófilo, que não sabia grego, foi demitido por abandono do
cargo, exposto a todas as conseqüências de uma pobreza honrada, corajosa e
inflexível.
Para viver, foi fabricar, então,
na sua chácara de Cauípe, vinho de caju, cuja fermentação e filtragem
aperfeiçoou, e que tomou, no comércio, a denominação de “néctar”. Aquela abelha
não fabricava senão mel. Doce de alma e doce de coração, escolheu, para
explorar, a mais doce e amável das indústrias. Não sabia grego, mas era um
irmão de Aristeu, isto é, do primeiro grego que domesticou abelhas.
Não foi, todavia, na sua
indústria, mas no seu apostolado, que o governo cearense passou a atacar o
venerando e suave trabalhador. Toda a vez que a seca se manifestava no sertão,
a companheira da fome era, sempre, a varíola. Farmacêutico, Rodolfo Teófilo
chamou a atenção das autoridades sanitárias para a vacinação intensa. A ciência
provinciana não admite, porém, insinuações. Só os oposicionistas fazem
observações públicas ao governo ou aos seus auxiliares. E Rodolfo Teófilo
passou a figurar no índex governamental.
Seu coração não se conformava,
entretanto, com a devastação que a varíola fazia no Ceará. Menos para afrontar
o governo do que para substituí-lo no exercício de um dever caprichoso, passou
a vacinar, por conta própria, nas vizinhanças da capital. Adquiria vitelos, e
fabricava uma das melhores vacinas do Brasil, a qual era distribuída
gratuitamente pelos médicos locais que a pediam, ou enviada, independente de
remuneração, para os Estados vizinhos. O governo do Estado multou-lhe o
laboratório. E como se isso não bastasse, o órgão oficial do partido governista
fazia contra a vacina utilizada pelo filantropo a mais terrível e desumana das
guerras, aconselhando a população que a não aceitasse, porque era venenosa e
causava a morte!
Não obstante essa campanha,
Rodolfo Teófilo não esmorecia. Com a sua voz mansa, os seus olhos bons, e a sua
derramada barba de apóstolo, andava de casa em casa, pedindo licença para
premunir a família contra a epidemia reinante. Vacinada a maior parte da
população da capital, passou ele, com a mesma dedicação, a exercer o sacerdócio
entre a gente do interior. Escanchado em um burro, e levando como bagagem
científica apenas a caixa de soro e alguns remédios suplementares, atirou-se
para os municípios mais próximos solicitando, de choça em choça, de fazenda em
fazenda, de povoado em povoado, permissão para vacinar as pessoas que ali
moravam. Os caboclos o recebiam, quase sempre, com acentuada desconfiança,
quase com hostilidade. E foi, então, quando, segundo se contava no sertão,
Rodolfo Teófilo inventou uma linda história cristã, que teria repetido mil
vezes, nos terreiros das cabanas e nos alpendres das casas de campo. Mais
tarde, ele contestou, em carta que me escreveu, a paternidade do conto. A
defesa foi, porém, tão frágil que me pareceu uma confirmação.
“Há muitos anos, — começava, foi
uma grande cidade, capital de um grande reino, atacada pelas bexigas, que
mataram quase toda a população. Dentro de pouco tempo estava a cidade quase
deserta. Quem não morreu, fugiu, abandonando casa, fazenda, riquezas, tudo.
Havia, entretanto, entre o povo, um homem muito bom, que, tendo perdido já
todos os parentes, resolveu deixar a terra empestada. Arrumou a sua roupa, e
partiu. Assim, porém, que chegou fora da cidade, encontrou-se com uma mulher
muito formosa, que puxava uma vaca toda preta, seguida de um bezerrinho, alvo como
o algodão. A mulher, ao vê-lo, perguntou-lhe por que fugia. Como ele lhe
explicasse, ela lhe pôs a mão no ombro, e disse: ‘Não tenhas medo, meu filho.
Volta à cidade com esta vaca e este bezerrinho. Quando chegares lá, tira uma
gota do seu leite e, com ele, faze três cruzes em cada braço, em todas as
pessoas que se quiserem salvar. Toda aquela em quem fizeres isso não será
atacada pela peste’. Aí, a mulher, que não era outra senão Nossa Senhora,
desapareceu, enquanto que o fugitivo regressava ao ponto de partida, onde fez o
que ela lhe havia dito, e salvou todo o resto do povo. Essa vaquinha —
acrescentava o narrador, — teve depois outras crias, e é do sangue e do leite
delas que eu trago algumas gotas, para salvar das bexigas os que são filhos de
Nossa Senhora.”
O sertanejo, ainda desconfiado do
homem, mas confiando em Deus, entregava prontamente o braço, e o braço dos
filhos, e o da mulher. E foi por esse meio que Rodolfo Teófilo, sozinho,
extinguiu a varíola, até hoje, no interior do Ceará.
E esse benemérito acaba de
morrer... Há um homem de menos na terra. Mas há, a esta hora, — se o céu
existe, — mais um justo entre os justos. (Destinos)
"