sábado, 1 de novembro de 2014


OCORRÊNCIAS INCOMUNS

Freitas de Assis*

Já mal despontam os primeiros raios de sol no horizonte e tem início a rotina diária em lares de todo Brasil. Com certa dificuldade e preguiça estampada na face, crianças e adolescentes seguem para o colégio enquanto seus pais cuidam do lar ou vão para a labuta rotineira buscando prover o sustento dos seus. Além de alimentos, roupas, por vezes remédios e algum supérfluo, em nossa terra, além dos itens citados, existe a necessidade de se obter água nestes tempos de escassez e seca inclemente. E a água que nos chega, e quando chega, é de duvidosa qualidade e procedência. Infelizmente é preciso que nos viremos com o que temos e rogar que nossos gestores tenham compaixão do povo e busquem soluções para este secular flagelo que nos persegue.  Como devotado pai de família, também sofro com a inconsistência do abastecimento em nossas torneiras, obrigando-me a comprar de carros-pipa, ou vez por outra recorrer ao vigor de meus braços para conseguir água, transportando-a de poços profundos, em baldes e garrafões. Mas apesar do esforço considero uma atividade que de certa forma me dá satisfação; talvez pelo simples fato de lidar com água, calmante natural, ou por que sacio a sede do meu lar.
Fora estes percalços domésticos, minha rotina de trabalho ainda está resumida a patrulhar as ruas de minha cidade a bordo de uma viatura com mais de cinco anos de uso, que já teve seus dias de glória e hoje, com mais de 350 mil quilômetros rodados e com a manutenção deixando um pouco a desejar, já não se pode dizer que é um carro de luxo, e nestes dias de fins de setembro e começo de outubro, que se aproxima com uma atemporal Festa de São Francisco por conta das eleições e com o ar-condicionado da viatura quebrado, já registramos no interior desta temperatura de 44 graus positivos. Uma sauna. Mesmo que haja certo desconforto, nosso trabalho é essencial e embora acarrete riscos à nossa integridade física, nossos turnos de 12 horas de serviço, alternados entre um período diurno outro noturno, sempre nos reservam alguma ocorrência inusitada, a qual, embora não possa ser classificada como um acontecimento fantástico, é no mínimo incomum.
Outro dia, já é quase meia noite e o COPOM, através do rádio transceptor da viatura, solicita nossa presença próximo da Praça Dr. Aramis, onde o policial Guedes, que estava de folga, pedia um apoio da patrulha. No local, perto da praça, na entrada da rua Raimundo Alcoforado, estavam dois elementos rendidos por ele, alguns curiosos e um portão de ferro ao solo, supostamente furtado por um dos abordados. Guedes me informa que sua vizinha ouvira um barulho e ao verificar do que se tratava, ficou surpresa quando viu nas sombras da noite um homem levando o portão de sua residência. A vítima chama o vizinho policial, que segue o criminoso por um caminho paralelo em sua moto, interceptando-o no local onde ora nos encontrávamos. Um dos suspeitos disse que apenas estava em local e hora errados e nada tinha a ver com o fato. Quanto ao segundo, este foi visto pelo policial com o portão no ombro e o largou no instante da abordagem, mas mesmo assim negou o fato e disse que era um trabalhador. Diante das circunstâncias, dei voz de prisão ao acusado e o conduzi com o produto do crime ante a presença da autoridade policial. Mas antes de entrar no xadrez da viatura falou mais uma vez que era inocente e também portador do vírus HIV. Felizmente estava ileso, não ofereceu qualquer resistência e não corremos qualquer risco. Na delegacia foi autuado por furto.
Embora não seja um furto comum, não é a primeira vez que atendo a uma ocorrência onde o objeto furtado seja o portão de uma residência ou o acusado portador de AIDS. Mas em quase toda situação de furto existe pelo menos mais dois criminosos envolvidos. O primeiro é o receptador, que se não existisse, não haveria furtos. O segundo envolvido é o traficante de drogas, que é quem mais lucra na situação, principalmente quando o produto do furto é de fácil venda, como aparelhos celulares que nas mãos de viciados são trocados por ninharias.
Sobre o tráfico de drogas, estamos em ano de eleições e a maioria dos candidatos fez vãs promessas em busca do voto de incautos eleitores. E como um assunto leva a outro, nesta campanha eleitoral havia uma diversidade gigantesca de propostas hilárias e esdrúxulas, dentre as quais, também relacionada ao tema violência, está a de um candidato a deputado propondo, nos escassos segundos a que tinha direito, a instalação de artefatos nos caixas eletrônicos dos bancos, que exalariam gás venenoso em caso de tentativa de arrombamento por parte de assaltantes, onde os bandidos tombariam sem vida. Agora se este sonhador fosse eleito e seu homicida projeto aprovado, teríamos que torcer, ou então rezar, para o caixa não apresentar defeito e o cliente não ter que sair do banco num caixão de madeira.
E em mais um dia de serviço outra ocorrência “exótica”. Esta foi pela manhã. Eram pouco depois de sete horas e o rádio da viatura desta vez conclama-nos para irmos até a cadeia pública para uma escolta de detentos. Diariamente existem escoltas de presos da justiça para o fórum ou para o hospital, neste último caso para serem medicados. Ocorre que ao chegarmos à cadeia pública de Canindé, já vemos a inusitada cena: uma mulher jovem, morena, de alguma beleza e olhos expressivos estava algemada ao lado do agente penitenciário. Nossa missão não seria conduzi-la ao fórum para uma audiência, nem tampouco para medicá-la no hospital. Nossa missão era levá-la até a Casa Abrigo, localizada no CSU, onde crianças e adolescentes em situação de risco ficam abrigadas. Lá, a detenta iria amamentar seu filho menor de um ano de idade. Ela estava detida pelo mesmo motivo que a maioria das mulheres encarceradas no Brasil o são: o tráfico de entorpecentes. Chegando ao local, a criança já não mais estava. Sua família, mãe e irmã da detenta a levaram para Fortaleza, onde residem. Ao receber a notícia de uma funcionária da instituição acolhedora, lágrimas escorrem dos olhos da jovem mãe e ela nos roga que a levemos até o terminal rodoviário para tentar ver o filho; e lá estava a criança com a avó e a tia, juntamente com dois irmãos mais velhos. Desembarcamos da viatura, o agente retira-lhe as algemas e observamos o reencontro de uma família separada pelas drogas. Uma cadeira é providenciada e uma mãe oferece o seio ao filho. Instantes depois, em meio a beijos, abraços e brincadeiras, o sonho se dissipa. Vem a despedida e o retorno ao cárcere, em meio ao olhar de passageiros curiosos com a comovente e incomum cena. Na cadeia ela desembarca com o agente, agradece com um muito obrigado e deseja-nos boa sorte.

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*Cabo PM, colaborador do Blog.

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