quinta-feira, 16 de janeiro de 2014

Em meados do século passado, quando o semi-árido cearense ainda não contava com os serviços de meteorologia, o canindeense Josa Magalhães escreveu esse texto, um autêntico apanhado das chamadas "experiências" sertanejas sobre inverno. 

PREVISÕES FOLCLÓRICAS DAS SECAS E DOS
INVERNOS NO NORDESTE BRASILEIRO

Josa Magalhães*

Ainda de todo não termina o inverno e já o sertanejo se preocupa em fazer experiências que possam algo revelar sobre o próximo ano. Assim, as primeiras experiências são feitas em junho e se relacionam com São João e São Pedro. Diz-se que se no dia 23 ou 24 de junho, véspera ou dia de São João, cair um serenozinho ou pintar chuva durante o dia, o inverno do ano seguinte será bom. Afirma-se, outrossim, que se, à noite, cair chuva que apague a fogueira de São João, não faltará inverno, igualmente, no próximo ano. Veríssimo de Melo (Chuva na tradição popular, março de 1951) anota esta experiência colhida por mim da boca de um rurícola do município de Santa Quitéria. Contou-me Abílio Pinheiro da Silva, morador na propriedade Riacho Verde, no município de Itatira, que na véspera do dia de são João, no lugar em que for feita a fogueira, previamente se enterra uma garrafa cheia de água.
Neste sítio, então, se levanta a fogueira. No dia seguinte, extinta a mesma, se a garrafa conservar-se ainda cheia, haverá bom inverno. Se estiver inteiramente vazia, será uma seca. Se nela existir bastante água, sinal é de inverno regular. Se, porém, houver muito pouca, conta-se com um inverno escasso. O dia de São Pedro também serve de experiência. Em fins de 1949 dizia-me Francisco Anastácio Costa, morador na fazenda Feijão, no município de Canindé, que, quando no dia 29 de junho, dia de São Pedro, pinta chuva, o inverno vindouro é de boas águas. Acrescentou-me, ainda, que, naquele ano, tal dia foi muito bonito, prometendo até rio cheio, por isso fez bons roçados e estava confiante que o ano de 1950 seria um ano de muito bom inverno. E foi.
A inconstância das chuvas, o temor das secas e a ausência de órgão previsor do tempo geram, pois, no espírito atribulado do sertanejo, grande inquietação, tanto maior quanto mais se aproxima a época das precipitações pluviais. Nesta conjuntura, a seu modo, entra o sertanejo a interpretar os fatos da natureza e a fazer previsões empíricas do tempo.
Há um provérbio que diz: “De chuva e eleição não se faz previsão”. Todavia, como afirma J. de Figueiredo Filho: “Todo mundo é profeta no Ceará e no Nordeste. Como são muitos os adivinhos, alguém há de acertar, assim como se tira dinheiro em jogo do bicho ou na roleta do jaburu”. Aliás, os sertanejos mais antigos e aqueles que fazem alguma leitura, emitem suas profecias arrimados em interpretações do Lunário Perpétuo que, segundo Filipe Guerra, em Secas contra a seca, “tem para muitos sertanejos ainda a força das Escrituras Sagradas”.
As previsões populares do tempo não são privativas do Nordeste brasileiro. Os hindus acreditam que quando as cobras dançam vai chover. Conta Brewton Berry que ”Os caçadores de Bornéu observam as Plêiades e determinam o tempo para preparar a terra para a plantação”. Informa Georg Buschan que “O cuco passa por anunciar e trazer a chuva, sobretudo quando seu canto é ouvido próximo das habitações”. Franz Baur, por sua vez, narra que na Alemanha “O desejo de poder prever o tempo é quase tão antigo como a própria humanidade, porque o tempo é para muitos ramos da atividade humana, principalmente para os que cuidam da alimentação do homem, de grande importância. Da observação do vento e das nuvens, ou da orientação dos animais e da transmissão verbal de resultados de observações, de geração para geração, formaram-se vagamente determinadas regras de tempo que se conservam, em parte, até hoje”.
Refere Yves D’Evreux que, entre os testes a que se submetia um índio a fim de ser guindado à categoria de pajé, figurava curar os doentes com sopro e prenunciar chuva.
O nordestino, mercê do insulamento do meio físico em que vive e por força da natureza de sua personalidade anímica, “tão mestiça quanto a sua constituição física”, como preceitua Alcântara Machado em Vida e morte do bandeirante, não podia menos que tomar o mesmo rumo. Daí a sua postura perscrutadora em face do tempo e das coisas. Observa a posição das constelações, o movimento dos astros, o círculo da lua, a forma das nuvens e não deixa de reparar nas condições do acaso nem nas circunstâncias personalíssimas em que nasce o sol em determinados dias. O canto dos pássaros, a atitude dos insetos, a conduta dos animais e o comportamento das árvores, outros tantos elementos são de que se socorrem os sertanejos para tirar conclusões sobre se, no próximo ano, haverá seca ou inverno. E tudo isto além de enriquecer o nosso variado folclore, constitui um corpo de doutrina, um código de sabedoria popular com que se procura deitar luz sobre o futuro.
Ademar Vidal, percuciente conhecedor da alma sertaneja, animado, talvez, do conceito de Brewton Berry de que “A natureza tem por esporte anunciar, generosamente, as suas intenções”, empresta excepcional valor às previsões populares do tempo, ao afirmar que “o sertanejo é mestre no assunto, não erra, não se equivoca — fala de certeza”.
E, na verdade, para os sertanejos tais experiências valem mais que toda a ciência experimental dos doutores, porque são tradições orais que vêm de outras eras, legadas por seus maiores, homens bem experimentados neste mister. Daí a fé inviscerada que nelas depositam e que lhes mantém o tônus da esperança cheio de vitalidade. Quando alguém, em base científica, se aventura a predizer se o ano futuro é seco ou molhado, o caboclo sertanejo costuma ironizá-lo dizendo que “Profecia de doutor não vale pra nada: quando diz que vem chuva é seca e quando pensa em seca o que aparece é inverno grande”. No entender dos sertanejos, ninguém melhor do que eles conhece os problemas de sua região porque nela vivem e observam.
Alguns desses profetas, adivinhadores da seca e inverno, são discretos e reservados nas suas afirmações. Outros, porém, apresentam-se jactanciosos e não perdem oportunidade de fazer praça de suas previsões. Destes, o povo não perdoa os erros. A propósito, conta Luís Vieira que certo indivíduo assegurara que em tal ano as terras do Nordeste seriam assoladas de terrível seca. Como se não verificara tal previsão, o impostor quase fora linchado pelo povo. Conheço outro caso de certo profeta que, havendo vaticinado seca para 1950 e se não tendo vingado a sua predição, pois 1950 foi ano de bom inverno, algumas pessoas pretenderam dar-lhe um banho na corrente tumultuosa de um rio transbordante, “Pra não sê besta, pois, só Deus sabe quando vem chuva”, diziam.
Revela notar, entretanto, que, incontestavelmente, muitas pessoas possuem aguçada sensibilidade de observação e se algumas destas observações ou experiências são destituídas de fundamento e bom senso, outras, todavia, não deixam de basear-se em razões que farte plausíveis. “Indivíduos incultos”, comenta Felix Renault, “testemunham, às vezes, espírito de observação que muitas vezes os sábios não possuem.”
Muitas pessoas do município de Canindé informam que quando o ano é bom gosta de pintar chuva, antecipadamente, do dia 3 para o dia 4 de outubro, dia de São Francisco. Mas esta observação não é exclusiva de Canindé. É igualmente feita em Mombaça. Assim é que Serafim Pedrosa de Lima afirma que quando há manifestação de chuva no dia 3 de outubro é bom sinal de inverno. Relâmpagos nos dias 7 e 8 de dezembro, véspera e dia da Conceição, significam ótimo prenúncio de bom e próximo inverno. Os sertanejos observam muito este sinal, que Filipe Guerra colheu no Rio Grande do Norte e consignou em Secas contra a seca. O dia 13 de dezembro não se passa sem se fazer a experiência de Santa Luzia. Sobre uma superfície lisa qualquer, exposta ao sereno da noite, depõem-se seis pequenas pedras de sal que representam, designadamente, os seis primeiros meses do ano. Na manhã seguinte o maior ou menor grau de umidade de cada pedra responde à maior ou menor intensidade de chuva no mês que ela representa. A este respeito registra Filipe Guerra um fato cômico. “Contam que um gaiato, vendo uma velha colocar as pedrinhas em certo lugar, foi, às ocultas, e deitou uma gota d’água em cada pedra. Pela madrugada a velha ficou aterrorizada e alarmada ante a perspectiva de seis meses de inundações.” Às seis horas da manhã do dia dois de fevereiro, dia de Nossa Senhora das Candeias, costuma-se fazer uma pequena fogueira com fragmentos de madeira, a qual se não deixa enchamejar. Se a fumaça subir verticalmente, é inverno ruim. Se, ao contrário, a fumaça espalhar-se rasteira, muito baixa, preconício é de bom inverno. A barra de nuvens com que se apresenta o amanhecer dos dias de Natal e Ano Bom traz, muita vez, indícios de inverno promissor.
Se, ao serem partidas as hóstias, nas missas do Galo e Ano-Bom, dão elas um estalido crepitante, conclui-se em desfavor do ano; se, ao contrário, emitem som surdo, significa sinal de bom inverno. Disse-me um velho sertanejo, residente no município de Patos, que nunca deixa de assistir às missas do Galo e Ano-Bom e ajoelha-se sempre perto do padre, a fim de escutar o estalo da hóstia consagrada. Acrescenta que é uma experiência dos seus avós que não falha. Um jovem português, residente em Fortaleza, informou-me que, nas zonas rurais de Portugal, os camponeses têm muito em conta esta experiência em certas previsões do tempo e se baseiam no estado higrométrico do ar. Se o estalo da hóstia é surdo é porque o tempo está úmido e prenuncia chuva. Se, ao revés, é crepitante, significa secura do ar, por conseguinte, falta de chuva. Abelardo Parreiras, a respeito desta experiência, faz, em Sertanejos e cangaceiros, o seguinte comentário: “A experiência mater é sem dúvida esta. Consiste no seguinte: geralmente, nas capelas distanciadas do sertão, costumam os camponeses muito se esforçarem pela celebração desta solenidade. Da vizinhança de muitas capelas, existentes no interior dos lugarejos, acorre uma verdadeira multidão que se espraia ao longo das pequenas praças fronteiriças às capelinhas do sertão. Precisamente à meia-noite o sacerdote inicia a missa. Sucede que, às vezes, ou a temperatura ambiente é de calor sufocante, ou se torna amenizada pela aproximação dos ventos alísios, portadores de chuvas. Se, na primeira hipótese (calor), a fração da partícula no altar dá um pequeno estalido e logo os circunstantes, apreensivos, retiram-se na convicção de seca; se, porém, na segunda hipótese (ventos alísios), a fração litúrgica não produz estalido, imediatamente, inundam-se os ânimos de alvissareiras esperanças de abundantes chuvas”.
Contava o velho José de Barros, morador no sítio Petrópolis, próximo a Mulungu, na Serra de Baturité, que, se durante a festa de São Sebastião, celebrada naquela vila, de 10 a 20 de janeiro, os balões soltados à noite, depois da novena, se dirigiam para o lado do poente ou sertão, o inverno seria escasso. Se, porém, rumavam para o lado do nascente, podia-se contar com bom inverno.
Para o dia de São José, 19 de março, que é sempre precedido de novenário e promessas, já meio desconfiados, convergem os sertanejos as suas últimas esperanças sobre o inverno do ano corrente. Se não chover até este dia, está decretada a seca. O dia 19 de março, naturalmente, pode apresentar modificações atmosféricas com indícios de chuva, mercê da influência equinocial. Mas o sertanejo, que isto ignora, crê tão-somente no poder de São José. Em Ao som da viola diz Gustavo Barroso que “Tal crença é dos povos do Oriente europeu e, através da Península Ibérica, modificada pelos ambientes e pelas devoções especiais, veio localizar-se no Centro-Norte do Brasil”, Luís da Câmara Cascudo, em Anubis e outros ensaios, reafirma ter vindo de Portugal esta tradição. Todavia, cita um trabalho do professor J. A. Pires de Lima que julga ter esta crença popular origem muçulmana.
..........................
Texto de Josa Magalhães publicado em Antologia do Folclore Cearense, Florival Seraine (org.), Edições UFC, Fortaleza, 1983, excertos pp.135-140. 

____________
*Josa Magalhães era primogênito do Cel. Joaquim Cordeiro de Magalhães, que empresta o nome à rua Joaquim Magalhães, em Canindé. Josa nasceu do dia 8 de janeiro de 1896, formou-se em medicina na Bahia em 1924, casou com uma irmã do empresário Cesar Campos, D.Áurea Campos de Magalhães. Faleceu em 31 de outubro de 1983, depois do seu filho Luciano Magalhães, do seu irmão Joaquim Magalhães e do seu cunhado Chico Campos. Respeitável cidadão, foi um dos fundadores da faculdade de medicina do Ceará. (Informações biográficas fornecidas pelo historiador Augusto Cesar Magalhães Pinto, autor de Viagem pela História de Canindé e Histórias de nossa terra e de nossa gente.)

Nenhum comentário:

Postar um comentário