MILITARISMO, IMPUNIDADE
E GRATIDÃO
Freitas de Assis*
Passados
pouco mais de duas décadas desde que ingressei na Polícia Militar do Ceará, significativas
mudanças ocorridas no país em diversos setores: sociais, culturais, econômicos
e também tecnológicos, influenciaram, nestes últimos vinte e dois anos, evoluções
comportamentais na sociedade e instituições que a representam. Entre tais
instituições, a Polícia Militar, que tem como fundamentos a defesa e a proteção
da sociedade, das pessoas que a compõem e de seu patrimônio. Nos anos noventa
do século passado, andávamos em viaturas menos possantes, o armamento era já
considerado obsoleto e o fardamento vez por outra estava roto e remendado. Eu
mesmo cheguei a mandar colocar por minha conta solados novos nos meus coturnos
e a comprar fardamento para andar com decencia.
A
história hoje mudou. Há alguns anos recebemos viaturas novas e possantes. Embora
algumas já estejam sucateadas, são carros de luxo; utilizamos pistolas e fuzis
semiautomáticos, o fardamento é melhor e os coletes à prova de balas que usamos
eram uma utopia à época que ingressei na corporação. Mas as mudanças ocorridas
na sociedade ainda são pouco percebidas quando comparadas com a gloriosa instituição
a que pertenço, pois parece ter parado no tempo. Certamente melhorias e mudanças
gigantescas ocorreram nela ao longo da história. O advento do Estado Novo, o
fim da era Vargas, a ditadura militar e a redemocratização da nação, por
exemplo, acarretaram algumas poucas mudanças. Contudo, ainda é criticado seu
código disciplinar, a defasagem e a falta de isonomia salarial, a ausência de
um plano de cargos e carreiras, o atraso nas promoções e o fato de ser essencialmente
uma instituição militar; e muitos de fora acreditam que este fato por si só motiva
a violência praticada por alguns policiais em determinadas ocorrências, rotulando-os
de truculentos e despreparados. Entretanto, é comum vermos na mídia cenas de
violência executados por agentes da lei fardados em outros rincões mundo afora
sem serem, necessariamente, militares.
Não
sou a favor de qualquer tipo de violência e muito menos defensor de um
militarismo exacerbado dentro das polícias militares. Durante a ditadura (1964
a 1985), a polícia foi utilizada como instrumento de repressão e tortura pelo Estado,
deixando incrustado nas corporações militares, mesmo com a redemocratização do
país após o fim da obscura era a partir de 1985, um sentimento de combate a um
inimigo interno, onde às vezes o combate ao crime é tratado como uma guerra, o
que verdadeiramente é. E como em toda guerra, além dos combatentes, inocentes
saem mortos ou feridos. Ainda em relação ao militarismo nas polícias e sua
extinção, os partidários de uma polícia que não seja militar, argumentam que
uma polícia não militar, embora uniformizada e com uma estrutura hierárquica,
trataria melhor os homens e mulheres que a compõem, e este tratamento mais
humanizado seria percebido no trato dos policiais para com a sociedade. A
questão se será ou não desmilitarizada a secular instituição, ou se tal fato
diminuirá a violência, o tempo responderá.
Sobre
a violência, ela é intimamente ligada à impunidade e a falta de políticas
públicas de inclusão social e prevenção ao crime, onde o Estado só o combate
quando já tem ocorrido; pouco fazendo em criar condições de evitá-lo,
investindo melhor em educação e geração de renda, por exemplo. È rotina
abordarmos elementos nocivos à sociedade que em tese deveriam estar
encarcerados pelos inúmeros artigos do código penal que infringiram. Mas estão
em completa liberdade. E a maioria dos criminosos em liberdade fica à toa, não
tem o que fazer ou não possuem uma formação profissional. Os muitos que buscam
trilhar um caminho na retidão e honestidade, são vistos de forma preconceituosa
pela sociedade, não conseguem uma colocação no mercado de trabalho e muitas
vezes aprenderam outra modalidade de crime na ociosa prisão. O resultado é a
reincidência criminosa em infrações mais graves, pois sabem que o tempo em
clausura é pequeno devido ao excesso de prazo e a progressão de regime. Felizmente,
apesar de todas as adversidades, muitos são ressocializados.
Ainda
é comum, entre nós policiais, o espanto e a indignação quando vemos criminosos
em liberdade onde pouco tempo atrás os havíamos colocado na prisão. Corria o
ano de 1999 e eu morava e trabalhava em Hidrolândia. Uns três anos antes, um
sobrinho de minha esposa chamado Rogério, que trabalhava como mototaxista em
Santa Quitéria, fora assassinado. O criminoso roubara sua moto e ocultara seu
corpo após ter lhe dado um tiro covarde na nuca. Dias depois o mesmo fora preso
e colocado à disposição da justiça que o sentenciou a 19 anos de reclusão no
regime fechado pelo crime de latrocínio. Chico do Oséas, como era conhecido, estava
preso em Canindé quando da sentença. Transferido para Hidrolândia, sua terra natal,
através da intervenção da família consegue uma ocupação, e o juiz o coloca no
regime semiaberto. Por está bem próximo da pessoa e da família a quem ele
vitimou, a primeira vez que o vi na rua andando de bicicleta em frente da
delegacia, numa tarde de sol ameno, tive uma sensação de revolta e descrédito
na justiça. Se quis fazer justiça com as próprias mãos? Não sei responder. Contudo,
sei perfeitamente que juízes apenas põem em prática a lei que homens escolhidos
por nós formulam, muitas vezes pensando neles próprios como réus. Vem desse
fato, talvez, sua flexibilidade.
Não
sou partidário de prisão perpétua, mas de uma prisão mais rígida que eduque e
prepare o infrator para o retorno à comunidade.
O
tempo, inexorável senhor de nossos destinos, é implacável com todos nós. Rugas
de expressão, grisalhos cabelos e dores articulares aqui e acolá, evidenciam
que o meu antes imbatível organismo já demonstra sinais de cansaço. Mas nem por
isso desanimo, afinal, envelhecer é um processo natural e procuro regrar uma
rotina de atividades físicas para manter um pouco do vigor e forma física que
tinha em minha tenra juventude. O passar dos anos não quebra minha rotina de
trabalho. Ainda repito os mesmos gestos e procuro manter a polidez e compostura
de velho militar doutrinado, alguns diriam adestrado. Quando vou trabalhar, acordo
cedo e escovo os coturnos. Tomo banho, faço a barba e visto o uniforme. Após
assumir o serviço com meus companheiros, vamos fazer nosso rotineiro trabalho
de patrulha e abordagens. Geralmente enfadonho e monótono.
Canindé,
16 de janeiro de 2014. Apreendemos um jovem de 15 anos no bairro Canindezinho,
que juntamente com outro, arrombou uma casa e furtou um espelho e algumas velhas
panelas. O comparsa fugiu, mas recuperamos os objetos e conduzimos vítima e
acusado para a delegacia. Após o procedimento, o autor do furto saiu da
delegacia antes da vítima e de nós policiais. Mais tarde, por volta de 17 horas,
recebemos um informe sobre uma moto com placa adulterada com dois elementos
rondando pelo Centro de Canindé. Fizemos diligências pelo local e conseguimos
localizar e abordar os suspeitos, que além de terem roubado a moto, assaltaram
um cartório e estavam em posse de um revólver (após alguns meses e antes de
serem condenados, é provável que os abordemos outra vez). Populares próximos ao
local aplaudem nossa ação. Na delegacia, após contabilizarmos o dinheiro
roubado e apresentar as demais provas à autoridade policial, que depois me
confessa sentir-se cansado pelo fato de estar desde a manhã trabalhando e assoberbado
de trabalho, concluímos o procedimento enquanto as vítimas e companheiros de
trabalho parabenizam a mim e aos soldados Dias e Robson Nunes pelo trabalho bem
executado. Um gesto de gratidão e reconhecimento não é nenhuma novidade para
quem já está contando os anos para se aposentar, mas é
uma grande e revigorante injeção de ânimo que me motiva a executar cada vez melhor
esta tão árdua, perigosa e, às vezes, ingrata missão de policial militar.
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*Cabo PM, colaborador do blog.
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