sábado, 25 de janeiro de 2014

MILITARISMO, IMPUNIDADE
E GRATIDÃO

Freitas de Assis*

Passados pouco mais de duas décadas desde que ingressei na Polícia Militar do Ceará, significativas mudanças ocorridas no país em diversos setores: sociais, culturais, econômicos e também tecnológicos, influenciaram, nestes últimos vinte e dois anos, evoluções comportamentais na sociedade e instituições que a representam. Entre tais instituições, a Polícia Militar, que tem como fundamentos a defesa e a proteção da sociedade, das pessoas que a compõem e de seu patrimônio. Nos anos noventa do século passado, andávamos em viaturas menos possantes, o armamento era já considerado obsoleto e o fardamento vez por outra estava roto e remendado. Eu mesmo cheguei a mandar colocar por minha conta solados novos nos meus coturnos e a comprar fardamento para andar com decencia.
A história hoje mudou. Há alguns anos recebemos viaturas novas e possantes. Embora algumas já estejam sucateadas, são carros de luxo; utilizamos pistolas e fuzis semiautomáticos, o fardamento é melhor e os coletes à prova de balas que usamos eram uma utopia à época que ingressei na corporação. Mas as mudanças ocorridas na sociedade ainda são pouco percebidas quando comparadas com a gloriosa instituição a que pertenço, pois parece ter parado no tempo. Certamente melhorias e mudanças gigantescas ocorreram nela ao longo da história. O advento do Estado Novo, o fim da era Vargas, a ditadura militar e a redemocratização da nação, por exemplo, acarretaram algumas poucas mudanças. Contudo, ainda é criticado seu código disciplinar, a defasagem e a falta de isonomia salarial, a ausência de um plano de cargos e carreiras, o atraso nas promoções e o fato de ser essencialmente uma instituição militar; e muitos de fora acreditam que este fato por si só motiva a violência praticada por alguns policiais em determinadas ocorrências, rotulando-os de truculentos e despreparados. Entretanto, é comum vermos na mídia cenas de violência executados por agentes da lei fardados em outros rincões mundo afora sem serem, necessariamente, militares.
Não sou a favor de qualquer tipo de violência e muito menos defensor de um militarismo exacerbado dentro das polícias militares. Durante a ditadura (1964 a 1985), a polícia foi utilizada como instrumento de repressão e tortura pelo Estado, deixando incrustado nas corporações militares, mesmo com a redemocratização do país após o fim da obscura era a partir de 1985, um sentimento de combate a um inimigo interno, onde às vezes o combate ao crime é tratado como uma guerra, o que verdadeiramente é. E como em toda guerra, além dos combatentes, inocentes saem mortos ou feridos. Ainda em relação ao militarismo nas polícias e sua extinção, os partidários de uma polícia que não seja militar, argumentam que uma polícia não militar, embora uniformizada e com uma estrutura hierárquica, trataria melhor os homens e mulheres que a compõem, e este tratamento mais humanizado seria percebido no trato dos policiais para com a sociedade. A questão se será ou não desmilitarizada a secular instituição, ou se tal fato diminuirá a violência, o tempo responderá.
Sobre a violência, ela é intimamente ligada à impunidade e a falta de políticas públicas de inclusão social e prevenção ao crime, onde o Estado só o combate quando já tem ocorrido; pouco fazendo em criar condições de evitá-lo, investindo melhor em educação e geração de renda, por exemplo. È rotina abordarmos elementos nocivos à sociedade que em tese deveriam estar encarcerados pelos inúmeros artigos do código penal que infringiram. Mas estão em completa liberdade. E a maioria dos criminosos em liberdade fica à toa, não tem o que fazer ou não possuem uma formação profissional. Os muitos que buscam trilhar um caminho na retidão e honestidade, são vistos de forma preconceituosa pela sociedade, não conseguem uma colocação no mercado de trabalho e muitas vezes aprenderam outra modalidade de crime na ociosa prisão. O resultado é a reincidência criminosa em infrações mais graves, pois sabem que o tempo em clausura é pequeno devido ao excesso de prazo e a progressão de regime. Felizmente, apesar de todas as adversidades, muitos são ressocializados.
Ainda é comum, entre nós policiais, o espanto e a indignação quando vemos criminosos em liberdade onde pouco tempo atrás os havíamos colocado na prisão. Corria o ano de 1999 e eu morava e trabalhava em Hidrolândia. Uns três anos antes, um sobrinho de minha esposa chamado Rogério, que trabalhava como mototaxista em Santa Quitéria, fora assassinado. O criminoso roubara sua moto e ocultara seu corpo após ter lhe dado um tiro covarde na nuca. Dias depois o mesmo fora preso e colocado à disposição da justiça que o sentenciou a 19 anos de reclusão no regime fechado pelo crime de latrocínio. Chico do Oséas, como era conhecido, estava preso em Canindé quando da sentença. Transferido para Hidrolândia, sua terra natal, através da intervenção da família consegue uma ocupação, e o juiz o coloca no regime semiaberto. Por está bem próximo da pessoa e da família a quem ele vitimou, a primeira vez que o vi na rua andando de bicicleta em frente da delegacia, numa tarde de sol ameno, tive uma sensação de revolta e descrédito na justiça. Se quis fazer justiça com as próprias mãos? Não sei responder. Contudo, sei perfeitamente que juízes apenas põem em prática a lei que homens escolhidos por nós formulam, muitas vezes pensando neles próprios como réus. Vem desse fato, talvez, sua flexibilidade.
Não sou partidário de prisão perpétua, mas de uma prisão mais rígida que eduque e prepare o infrator para o retorno à comunidade.
O tempo, inexorável senhor de nossos destinos, é implacável com todos nós. Rugas de expressão, grisalhos cabelos e dores articulares aqui e acolá, evidenciam que o meu antes imbatível organismo já demonstra sinais de cansaço. Mas nem por isso desanimo, afinal, envelhecer é um processo natural e procuro regrar uma rotina de atividades físicas para manter um pouco do vigor e forma física que tinha em minha tenra juventude. O passar dos anos não quebra minha rotina de trabalho. Ainda repito os mesmos gestos e procuro manter a polidez e compostura de velho militar doutrinado, alguns diriam adestrado. Quando vou trabalhar, acordo cedo e escovo os coturnos. Tomo banho, faço a barba e visto o uniforme. Após assumir o serviço com meus companheiros, vamos fazer nosso rotineiro trabalho de patrulha e abordagens. Geralmente enfadonho e monótono.

Canindé, 16 de janeiro de 2014. Apreendemos um jovem de 15 anos no bairro Canindezinho, que juntamente com outro, arrombou uma casa e furtou um espelho e algumas velhas panelas. O comparsa fugiu, mas recuperamos os objetos e conduzimos vítima e acusado para a delegacia. Após o procedimento, o autor do furto saiu da delegacia antes da vítima e de nós policiais. Mais tarde, por volta de 17 horas, recebemos um informe sobre uma moto com placa adulterada com dois elementos rondando pelo Centro de Canindé. Fizemos diligências pelo local e conseguimos localizar e abordar os suspeitos, que além de terem roubado a moto, assaltaram um cartório e estavam em posse de um revólver (após alguns meses e antes de serem condenados, é provável que os abordemos outra vez). Populares próximos ao local aplaudem nossa ação. Na delegacia, após contabilizarmos o dinheiro roubado e apresentar as demais provas à autoridade policial, que depois me confessa sentir-se cansado pelo fato de estar desde a manhã trabalhando e assoberbado de trabalho, concluímos o procedimento enquanto as vítimas e companheiros de trabalho parabenizam a mim e aos soldados Dias e Robson Nunes pelo trabalho bem executado. Um gesto de gratidão e reconhecimento não é nenhuma novidade para quem já está contando os anos para se aposentar, mas é uma grande e revigorante injeção de ânimo que me motiva a executar cada vez melhor esta tão árdua, perigosa e, às vezes, ingrata missão de policial militar.

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*Cabo PM, colaborador do blog.

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