sábado, 14 de dezembro de 2013


VELHAS LEMBRANÇAS

Freitas de Assis*

Em um tedioso domingo qualquer, ligo a tevê e vejo o vaivem das potentes máquinas de Fórmula Um com seu ronco característico na tela da poderosa rede Globo, a qual, segundo teorias de conspiração, além de cúmplice da ditadura é também uma máquina opressora, e com suas novelas e telejornais tendenciosos tenta ditar os rumos do país em seus diversos segmentos: econômicos, sociais, políticos e, óbvio, culturais. Entretanto, neste domingo de Fórmula Um, aflora do fundo do poço de minha velha e gasta memória, pedaços de uma infância com domingos de corridas em preto e branco, com animados desenhos pueris e o barbear dominical do saudoso pai a contar distantes histórias de meu avô, pintado como um super-herói, de força descomunal e severo olhar. Desses penetrantes, que raros são os pais que o têm hoje em dia; onde apenas de soslaio a criança o decifrava quando em conversa entre adultos, sabendo que significava que ali não lhe cabia. Embora rústico, era também carinhoso e condescendente.
De minha velha infância relembro outras histórias, como a de certo Nikita Kruchev e a crise dos mísseis em Cuba, que fascinava meu pai, e ele dizia que nesse tempo o mundo quase se acaba com fogo. Mas eu ainda não compreendia. Não tinha visto ainda nas aulas de história do professor Zé Augusto; eu gostava mesmo de ouvir era a estória de uma pescaria de caçotes e raposas, além de outra que parece ser uma fábula de Esopo, sobre o almoço de uma garça e uma raposa. São histórias e lembranças distantes como as estrelas que vemos numa noite sem luar; velhas fotografias de um passado que chega até nós em lampejos de luz que viajam por estradas tortuosas e enevoadas de nossa mente, onde nem sempre as lembranças são como queríamos que fossem.
Recordações, nem sempre boas e inocentes, fazem parte de nossa existência. Uma poesia, publicada outro dia no caderno de cultura e literatura do Diário do Nordeste, do padre Antônio Tomaz, ilustra um pouco o que são velhas memórias: ‘‘... O contrário dos tempos de rapaz: / os desenganos vão conosco à frente / e a mocidade vai ficando pra trás’’. Ah, mas é sempre bom relembrar tempos idos. Quer seja para rir, quer seja para chorar. São marcas que ficaram e cicatrizes curadas, desilusões que machucaram... São obstáculos vencidos. E nestes domingos de quem passa a semana trabalhando ou estudando, tirando o sábado para um passeio na praça com a família ou a namorada e um chope com os amigos, é bom acordar mais tarde. Preguiçosamente e sem responsabilidades; porém é bom lembrar-se de tirar um tempo para pôr a casa em ordem e organizar nossas bagunças. Acordo tarde neste domingo qualquer por necessidade física, já que não dormi na noite de sábado devido às obrigações profissionais de um movimentado plantão com ocorrências diversas. Do estupro de vulnerável à morte no trânsito, passando pela posse de entorpecente e embriaguez ao volante. Há ainda os crimes de menor potencial ofensivo, como desordem e perturbação do sossego alheio, cabendo a nós o papel de educadores sociais que protegem os cidadãos dos chacais famintos que rondam a sociedade.
E as memórias de domingos passados continuam a se libertar dos porões de nossa mente. Na minha adolescência, eu, meu pai e meu irmão Eriberto, às vezes, saíamos para pescar de manhã bem cedo no açude da Fazenda Salgado, a qual pertencia à Casa de São Francisco. Isso quando não íamos no sábado à tarde. Além da pescaria, meu pai também se aventurava aos finais de semana na agricultura, plantando além de milho e feijão, melancia, batata e melão, em um terreno cedido pela Casa de São Francisco aos funcionários. Minha missão nestas empreitadas, juntamente com meu irmão Eriberto, era recolher o peixe pescado pelo seu Noberto e colher os frutos da terra, além de plantar milho e feijão ‘’aos primeiros borrifos da chuva fecunda’’. Porém, nos foi ensinado que para plantar feijão eram necessários de três a quatro grãos, enquanto o milho, de quatro a cinco grãos (milagrosamente em algumas ‘’covas’’ nasciam até quinze pés). A explicação era que às vezes meu irmão... eu jamais, por engano, jogava alguns grãos a mais e o milagre da multiplicação das plantinhas ocorria. A distância até a Fazenda Salgado era em torno de três quilômetros, vencidos a pé de início, porém nosso benevolente pai montara duas bicicletas em robustos quadros datados de 1964, verdadeiras peças de museu com mais de vinte anos, mas que satisfaziam perfeitamente nossas necessidades de transporte e carga; entretanto, o velho Noberto preferia mesmo ir andando.
De tantas recordações que permeiam minha cachola, as de domingo à noite deixaram marcas, principalmente porque assistia com meu pai ao programa “Fantástico”, costume que procuro preservar até hoje; entretanto, um domingo que deixou uma lembrança marcante, principalmente por tratar-se de fato histórico, foi o domingo 21 de abril de 1985, dia de Tiradentes. Eu tinha 14 anos incompletos, há muitos dias o país acompanhava a agonia de um homem quetrouxera a esperança de volta ao coração de um povo sofrido que passara os últimos vinte anos sob a pilastra da opressão e da tirania de um regime cruel e ditatorial, onde o penúltimo presidente deste período havia prometido uma abertura política lenta, gradual e segura. Passava um pouco das 22 horas, não lembro bem o horário, o programa já havia começado com aquela melodia que já não se ouve mais: ‘’olhe bem, preste atenção’’, e surge um repórter da emissora que virou porta-voz da presidência e posteriormente entrou para a política, chegandoa ser eleito governador do Rio Grande do Sul, Antonio Britto. O olhar era firme e compenetrado, mas não surpreso, pois já sabia de antemão o que estava escrito no boletim médico; sua voz não deixou transparecer qualquer emoção, talvez pela mecânica repetição de chegar todos os dias e informar para a Nação o estado de saúde do paciente, quem sabe até alívio de não mais ter a obrigação de informar os boletins médicos. Seriam falsos? Mentiras que contava para enganar o povo? Quem sabe? Ele entrou em nossa casa através da tela da tevê e disse secamente: “Lamento informar que o excelentíssimo senhor Presidente da República, Tancredo de Almeida Neves, faleceu esta noite”. Meu pai, surpreso, disse: “Ah, meu Deus”. E veio a era Sarney, outra história.

Esta lembrança me faz recordar de outro fato. Também o anúncio de uma morte. Desta vez nas palavras do policial Sales em setembro de 2011, quando trabalhava de operador de rádio do 4º BPM, mandando um alerta para as viaturas de serviço em Canindé. Após, fez uma pausa mais demorada. Devido à demora eu disse ao rádio da viatura: “Mande a mensagem”. Usando o código de comunicação internacional o policial Sales respondeu: “Q.A.P.”. Significando que eu deveria aguardar. Diferentemente do porta-voz da morte de Tancredo, percebi uma comoção em sua voz quando voltou a modular no rádio e falou que era com profundo pesar que informava que o subtenente Parente falecera nas enfermarias do IJF em Fortaleza. Uma morte cheia de perguntas para serem respondidas. Infelizmente é mais uma de um companheiro que estará em nossa memória, assim como outras recordações que permeiam nossa existência. São momentos que um dia, quando o Criador nos chamar, “serão perdidos no tempo, como lágrimas na chuva”. São apenas lembranças. Alegres, cômicas ou tristes, são particulares a cada um de nós; entretanto não devemos ser nostálgicos extremistas e viver do passado, devemos viver bem nosso presente para construirmos um futuro forte.

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*Cabo PM, colaborador do blog.

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