VELHAS LEMBRANÇAS
Freitas de Assis*
Em um tedioso domingo qualquer, ligo a tevê e vejo o vaivem das
potentes máquinas de Fórmula Um com seu ronco característico na tela da
poderosa rede Globo, a qual, segundo teorias de conspiração, além de cúmplice
da ditadura é também uma máquina opressora, e com suas novelas e telejornais
tendenciosos tenta ditar os rumos do país em seus diversos segmentos:
econômicos, sociais, políticos e, óbvio, culturais. Entretanto, neste domingo
de Fórmula Um, aflora do fundo do poço de minha velha e gasta memória, pedaços
de uma infância com domingos de corridas em preto e branco, com animados
desenhos pueris e o barbear dominical do saudoso pai a contar distantes histórias
de meu avô, pintado como um super-herói, de força descomunal e severo olhar. Desses
penetrantes, que raros são os pais que o têm hoje em dia; onde apenas de
soslaio a criança o decifrava quando em conversa entre adultos, sabendo que
significava que ali não lhe cabia. Embora rústico, era também carinhoso e
condescendente.
De minha velha infância relembro outras histórias, como a de certo
Nikita Kruchev e a crise dos mísseis em Cuba, que fascinava meu pai, e ele
dizia que nesse tempo o mundo quase se acaba com fogo. Mas eu ainda não
compreendia. Não tinha visto ainda nas aulas de história do professor Zé
Augusto; eu gostava mesmo de ouvir era a estória de uma pescaria de caçotes e
raposas, além de outra que parece ser uma fábula de Esopo, sobre o almoço de
uma garça e uma raposa. São histórias e lembranças distantes como as estrelas
que vemos numa noite sem luar; velhas fotografias de um passado que chega até
nós em lampejos de luz que viajam por estradas tortuosas e enevoadas de nossa
mente, onde nem sempre as lembranças são como queríamos que fossem.
Recordações, nem
sempre boas e inocentes, fazem parte de nossa existência. Uma poesia, publicada
outro dia no caderno de cultura e literatura do Diário do Nordeste, do padre Antônio
Tomaz, ilustra um pouco o que são velhas memórias: ‘‘... O contrário dos tempos
de rapaz: / os desenganos vão conosco à frente / e a mocidade vai ficando pra
trás’’. Ah, mas é sempre bom relembrar tempos idos. Quer seja para rir, quer
seja para chorar. São marcas que ficaram e cicatrizes curadas, desilusões que
machucaram... São obstáculos vencidos. E nestes domingos de quem passa a semana
trabalhando ou estudando, tirando o sábado para um passeio na praça com a
família ou a namorada e um chope com os amigos, é bom acordar mais tarde. Preguiçosamente
e sem responsabilidades; porém é bom lembrar-se de tirar um tempo para pôr a
casa em ordem e organizar nossas bagunças. Acordo tarde neste domingo qualquer por necessidade física, já que não dormi na
noite de sábado devido às obrigações profissionais de um movimentado plantão
com ocorrências diversas. Do estupro de vulnerável à morte no trânsito,
passando pela posse de entorpecente e embriaguez ao volante. Há ainda os crimes
de menor potencial ofensivo, como desordem e perturbação do sossego alheio, cabendo
a nós o papel de educadores sociais que protegem os cidadãos dos chacais famintos
que rondam a sociedade.
E
as memórias de domingos passados continuam a se libertar dos porões de nossa
mente. Na minha adolescência, eu, meu pai e meu irmão Eriberto, às vezes, saíamos
para pescar de manhã bem cedo no açude da Fazenda Salgado, a qual pertencia à
Casa de São Francisco. Isso quando não íamos no sábado à tarde. Além da
pescaria, meu pai também se aventurava aos finais de semana na agricultura, plantando
além de milho e feijão, melancia, batata e melão, em um terreno cedido pela
Casa de São Francisco aos funcionários. Minha missão nestas empreitadas,
juntamente com meu irmão Eriberto, era recolher o peixe pescado pelo seu
Noberto e colher os frutos da terra, além de plantar milho e feijão ‘’aos
primeiros borrifos da chuva fecunda’’. Porém, nos foi ensinado que para plantar
feijão eram necessários de três a quatro grãos, enquanto o milho, de quatro a cinco
grãos (milagrosamente em algumas ‘’covas’’ nasciam até quinze pés). A
explicação era que às vezes meu irmão... eu jamais, por engano, jogava alguns
grãos a mais e o milagre da multiplicação das plantinhas ocorria. A distância
até a Fazenda Salgado era em torno de três quilômetros, vencidos a pé de
início, porém nosso benevolente pai montara duas bicicletas em robustos quadros
datados de 1964, verdadeiras peças de museu com mais de vinte anos, mas que
satisfaziam perfeitamente nossas necessidades de transporte e carga;
entretanto, o velho Noberto preferia mesmo ir andando.
De tantas recordações que permeiam minha cachola, as de domingo à noite
deixaram marcas, principalmente porque assistia com meu pai ao programa “Fantástico”,
costume que procuro preservar até hoje; entretanto, um domingo que deixou uma
lembrança marcante, principalmente por tratar-se de fato histórico, foi o domingo
21 de abril de 1985, dia de Tiradentes. Eu tinha 14 anos incompletos, há muitos
dias o país acompanhava a agonia de um homem quetrouxera a esperança de volta ao
coração de um povo sofrido que passara os últimos vinte anos sob a pilastra da
opressão e da tirania de um regime cruel e ditatorial, onde o penúltimo
presidente deste período havia prometido uma abertura política lenta, gradual e
segura. Passava um pouco das 22 horas, não lembro bem o horário, o programa já
havia começado com aquela melodia que já não se ouve mais: ‘’olhe bem, preste
atenção’’, e surge um repórter da emissora que virou porta-voz da presidência e
posteriormente entrou para a política, chegandoa ser eleito governador do Rio
Grande do Sul, Antonio Britto. O olhar era firme e compenetrado, mas não surpreso,
pois já sabia de antemão o que estava escrito no boletim médico; sua voz não
deixou transparecer qualquer emoção, talvez pela mecânica repetição de chegar
todos os dias e informar para a Nação o estado de saúde do paciente, quem sabe
até alívio de não mais ter a obrigação de informar os boletins médicos. Seriam
falsos? Mentiras que contava para enganar o povo? Quem sabe? Ele entrou em
nossa casa através da tela da tevê e disse secamente: “Lamento informar que o excelentíssimo
senhor Presidente da República, Tancredo de Almeida Neves, faleceu esta noite”.
Meu pai, surpreso, disse: “Ah, meu Deus”. E veio a era Sarney, outra história.
Esta lembrança me faz recordar de outro fato. Também o anúncio de uma
morte. Desta vez nas palavras do policial Sales em setembro de 2011, quando
trabalhava de operador de rádio do 4º BPM, mandando um alerta para as viaturas de
serviço em Canindé. Após, fez uma pausa mais demorada. Devido à demora eu disse
ao rádio da viatura: “Mande a mensagem”. Usando o código de comunicação internacional
o policial Sales respondeu: “Q.A.P.”. Significando que eu deveria aguardar. Diferentemente do porta-voz da morte de Tancredo, percebi
uma comoção em sua voz quando voltou a modular no rádio e falou que era com profundo
pesar que informava que o subtenente Parente falecera nas enfermarias do IJF em
Fortaleza. Uma morte cheia de perguntas para serem respondidas. Infelizmente é
mais uma de um companheiro que estará em nossa memória, assim como outras
recordações que permeiam nossa existência. São momentos que um dia, quando o
Criador nos chamar, “serão perdidos no tempo, como lágrimas na chuva”. São apenas
lembranças. Alegres, cômicas ou tristes, são particulares a cada um de nós;
entretanto não devemos ser nostálgicos extremistas e viver do passado, devemos
viver bem nosso presente para construirmos um futuro forte.
...................
*Cabo PM, colaborador do blog.
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