“É DEODORO, QUE PASSA...
(Humberto de Campos)*
‘Foram exumados ontem os
restos mortais do Marechal Manuel Deodoro da Fonseca, proclamador da República.’
(Dos jornais)
1889. 15 de novembro. Nove horas da manhã. Um sol de ouro
levanta-se vitoriosamente sobre a cidade do Rio de Janeiro, banhando-a com a
glória da sua luz. Do Campo de Santana às proximidades do Cais Pharoux há um
movimento de povo como nos dias de grande festa. Os grupos se formam, e se
desfazem, a cada instante, em cada esquina. As confeitarias, abertas há pouco,
enchem-se de fregueses e curiosos, que desceram dos arrabaldes à procura dos
primeiros boatos. Há uma alegria inquieta em todas as fisionomias. As notícias
que se espalham, são as mais extravagantes, as mais contraditórias. Há quem
informe que a República está proclamada, que o Imperador já se acha preso em
Petrópolis. E há quem afirme que essa informação é prematura, e que se trata,
apenas, de uma queda de Ministério, por imposição do Exército. Sabe-se que há
ministros detidos e que o Barão de Ladário tombou sob o revólver de um tenente,
à entrada da rua Larga. As notícias que circulam, e cujos autores se declaram
testemunhas dos acontecimentos, são, todavia, as mais vagas, as mais
imprecisas. O que há de verdadeiro, de incontestável, é que as tropas da
guarnição se encontram formadas, desde o alvorecer, no Campo de Santana, e que
a artilharia se acha com as peças voltadas para o Quartel General, cujos
portões foram fechados.
– Deodoro é que está comandando as forças rebeldes! –
assegura-se.
E esse esclarecimento vem dar, aos que o escutam, a certeza
de que a insurreição triunfará. Deodoro tem o Exército no punho da sua espada. Queira
ele que se faça a República, e a República se fará. Deseje apenas a queda do
Ministério, e o Ministério estará por terra. À sua palavra de comando, nenhum
batalhão ficará no quartel.
De repente, há uma correria de povo, do Largo de São
Francisco, descendo a rua do Ouvidor. Algumas casas de comércio cerram as
portas, apressadamente.
– O Exército vai atacar o Arsenal de Marinha! – avisam, os
que fogem em disparada.
Vozes de cornetas, e rufar de tambores, dão a impressão de
que é verdadeiro esse informe. E, de súbito, entram as tropas na rua do
Ouvidor. A multidão, em delírio, aclama, aí, as forças vitoriosas. Ouro Preto
está preso. Ladário está ferido. Os batalhões fiéis ao Ministério até à
madrugada, aderiram, finalmente, à sedição. E o Exército, unânime, vai convidar
a Marinha para dar a sua solidariedade ao movimento, aceitando a República.
O desfilar das tropas, feito em silêncio até o Largo de São
Francisco, é, agora, uma apoteose. As caixas rufam, os clarins estalam
heroicamente na manhã clara, e os batalhões rolam, em passo cadenciado e
militar, enchendo do seu ruído surdo aquela hora enorme de um novo dia que
entra triunfante na História.
Gritos e palmas reboam à passagem das tropas. Flores são
lançadas de algumas janelas sobre os soldados. O que mais entusiasma o povo, é,
porém, um grande velho que, magnífico na sua farda de general, a espada
desembainhada e encostada ao busto elegante, à frente das tropas que desfilam. O
olhar aquilino, a barba magnífica espalhada como para abrigar o coração, o seu
aspecto é altivo, soberbo, marcial.
A multidão aclama-o. Clangoram clarins. Rufam tambores.
É Deodoro, que passa...
1933. 22 de agosto. Nove horas da manhã. Um sol de ouro
levanta-se vitoriosamente sobre a cidade do Rio de Janeiro, banhando-a com a
glória da sua luz. No cemitério São Francisco Xavier, no bairro pobre do Caju,
reina o silêncio doce e comovido da morte. Nas árvores que dão sombra aos
túmulos cochicham pássaros inocentes, contando pequeninas histórias, em que
entram flores e insetos. A brisa remexe nos galhos, procurando-se a si mesma. Uma
tristeza meiga envolve as coisas como numa paisagem de sonho. À esquerda de
quem entra naquele pequeno mundo plantado de cruzes, há uma sepultura de
mármore negro, cuja tampa foi levantada. Coveiros silenciosos removeram a terra
desse túmulo, e retiraram dele um caixão de bronze. Dez ou doze pessoas
vestidas de preto assistem a esse trabalho, piedoso e cristão. É uma exumação, que
acaba de ser feita. O homem que ali dormia vai para outro sepulcro, no centro
do cemitério. Quatro daqueles homens suspendem o caixão. Parece vazio. Dentro ele
chocalha um esqueleto, que se desmembra e desfaz.
O pequeno cortejo forma-se, triste, calado, fúnebre,
cabisbaixo. Os quatro homens que tomaram o caixão entram por uma rua de
mausoléus. Os outros os acompanham, o passo grave e surdo, sem uma palavra, sem
uma lágrima. Os pássaros continuam cochichando, indiferentes. A brisa,
indiferente, sacode os ramos. O caixão oscila, chocalhando ossos, nas mãos que
o conduzem.”
É Deodoro, que passa...
__________
*Jornalista, político e escritor maranhense nascido em
Miritiba em 25 de outubro de 1886. Morreu no Rio de Janeiro em 5 de dezembro
de 1934.
Nenhum comentário:
Postar um comentário