domingo, 23 de junho de 2013

AS AVENTURAS DE ZÉ DA ROÇA
OU A ONÇA DA CARA PINTADA

Autor: Gilvandias Mateus*

Quem já enfrentou perigo
Conhece a situação
Não sei se é sina ou castigo
Se é destino ou maldição
Evitar, não tem quem possa
Foi a vez do Zé da Roça
Morador no Canfundó
Aceitou uma caçada
Meteu-se numa enrascada
Que só de lembrar, faz dó

Num serrote, bem no pé
Pertinho do Cafundó
Um conhecido de Zé
De nome João Mocó
Que ele há tempo não via
Mas lhe veio, certo dia
Com a cara de santinho
E Zé, com muita humildade
Perguntou: – Tem novidade?
O que faz aqui cedinho?

Assim, lançou sua flecha
Aquele sujeito João
Achando ali uma brecha
Pra fazer sua armação
Disse: – Quero a tua ajuda
Meu bom amigo, me acuda
Porque não lhe sou estranho
Maçaroca ou suçuarana
Faz mais de uma semana
Que estraga o meu rebanho

O teu chiqueiro é pertinho
Vai com certeza estragar
Porém, ainda é cedinho
Hoje mesmo é bom caçar
Enfrentarmos é preciso
Para evitar prejuízo
Antes que ela chegue aqui
E Zé, de cabeça feita
Sem querer fazer desfeita
Então resolveu-se a ir

Nem mesmo arma ele tinha
Que pudesse confiar
De soca, uma espingarda
De Tejo e preá matar
E enquanto se preparava
A sua mulher passava
Na mesma hora um café
E pensando na caçada:
– Se eles vê a malvada
O que será do meu Zé?

Após tomar o café
De sair, chegou a hora
E Benta, a mulher do Zé
Se pôs pra dentro e pra fora
Algo por dentro entalando
A sua língua coçando
Aí, começou falar:
– A onça é bicho valente
Come bode, come gente
Home num vai afoitar!

E Benta continuou:
– Caçá onça, né pra tu
Valentão já se atrepou
Em pé de mandacaru
Dêxe cume cabra e bode
Se nem corrê, tu num pode
Se avistá a maçaroca
Sem pudê gemê, falá
Cuma tu vai atirá
Cum essa arma de soca?!

Vendo o que Benta dizia
Já se sentia arrasado
Não quis dizer que não ia
Pra não ficar desfeitado
E dando seus últimos ais
João na frente, o Zé atrás
Como abatido e doente
O nervosismo atacava
Pra todo canto que olhava
Via onça em sua frente

João Mocó, de cartucheira
Zé, espingarda de soca
João, na cinta uma peixeira
Zé, no patuá, pipoca
Quando o serrote foi vendo
Um gelo foi percorrendo
Por riba do mucumbu
Frio igual água no tacho
Fez do seu rego um riacho
Indo até o “sibricu”

E, no serrote chegando
João fez avisado:
– É melhor nós separado
Cada qual para o seu lado
O Zé de nada sabia
Por onde a onça vivia
Foi que João o empurrou
Fazendo sua armadilha
Pegou uma outra trilha
E para casa voltou

E quando se separaram
No tal Serrote Condessa
Cabelos se arrepiaram
Dos pés até à cabeça
Sentiu que desunerou
Por dentro, e ele não lembrou
Haver comido mamão
E, juntando na barriga
Medo, mamão e lombriga
Causou grande confusão

E Zé foi se arrastando
De calça quase arriada
E por detrás, se agachando
De uma pedra rachada
Foi tamanha a sua asneira
Que a gente tem a besteira
De só cagar escondido
Aumentou sua desgraça
Antes de arriar a massa
Foi ali surpreendido

Pressentimentos, sinais
Zé sentiu um forte abalo
Antes de olhar pra trás
Ele ouviu logo um estalo
Mesmo de calça arriada
Atrás, fez tranca arrochada
Se viu numa geringonça
Multiplicou seu azar
Pois achou de defecar
Mesmo na furna da onça

E mesmo sem ver, sentia
A presença da inimiga
Suor no corpo corria
Torcicolo na barriga
A fera se aproximava
E o medo o apertava
Roubando a sua coragem
E de calça derrubada
Ficou sem ação pra nada
Só na pior desvantagem

De lado não pôde olhar
De frente, muito pior
A língua não quis falar
Tinha na garganta um nó
Ai, de quem foge da sorte
Estando diante da morte
O que é que a gente não faz...
Foi os quartos levantando
Por entre as pernas, olhando
A onça lá por detrás

Quando se posicionou
Ficando de quatro pé
Cada vez mais complicou
A situação do Zé
Pois sem querer olhar, viu
E cada vez mais sentiu
Todo o seu corpo gelando
Vendo na fera inimiga
Por debaixo da barriga
Uma coisa balançando

Zé ficou pensando, triste:
– Ou situação ruim
Tanta gente que existe
E vim pra cima de mim!
Essa mal-intencionada
Inda vem com trapalhada
Eu não posso aceitar isso
Quer se aproveitar demais
E só porque vem por trás
Quer fazer logo o serviço

Nessa pose complicada
As mãos no chão apoiando
Carroceria empinada
O tigre foi se animando
Zé viu a honra perdida
Onça estando recolhida
Toda desgraça ela topa
E vendo a situação
Do Zé nessa posição
Que o Brasil perdeu a copa...

O bucho do Zé havia
Pegado muita pressão
Chicotava e não saía
No canoa de escapação
De espada nua, o nojento
Pra concluir seu intento
Estava muito excitado
Zé pensou: – Vou afrouxar
Será que vai furdunçar
Num home todo borrado?!

E para se preparar
Firmou bem os pés no chão
Encheu os pulmões de ar
Para aumentar a pressão
E vendo a onça enxerida
Babando, feliz da vida
Pra traçar seu novo prato
Zé disse: – Eu honro o meu nome
Não é fácil que se come
Um sertanejo pacato

O animal fez flecheira
Zé da Roça liberou
Abrindo a porta traseira
(Cancela do corredor)
Lançou lombriga e mamão
Fígado, bofe, coração
Naquela onça sagaz
E salvou-se em cena rara
Até os olhos da cara
Quase saem por detrás

O animal truculento
Saiu como vaca louca
Tendo cheios de excremento
Nariz, olho, ouvido e boca
Por ela passou
Quem a viu, observou
Que ia desesperada
E a partir daquele dia
Nasceu esta poesia
“Onça da cara cagada”

Você que é caçador
Se uma onça avistar
A forma que Zé usou
Não procure praticar
Ele arriscou seu traseiro
Deu um disparo certeiro
E se erra, era comido
Vive a façanha contando:
– Quase que eu ia entregando
Ouro na mão do bandido

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*Gilvandias Mateus é cordelista canindeense.


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