quinta-feira, 3 de maio de 2012


SERTÃO ALEGRE

Chega às minhas mãos um presente inestimável: o livro Sertão Alegre, exemplar raro editado pela Imprensa Universitária do Ceará em 1965, com prefácio da escritora Rachel de Queiroz. A publicação é uma das mais importantes obras que o folclorista cearense Leonardo Mota (1891-1948) legou para nossas letras. Em suas quase 300 páginas, o livro reúne farta coletânea de causos e versos populares que o incansável Leota garimpou em suas pesquisas sertão adentro.
A oferta torna-se ainda mais especial, porque veio do meu amigo Tonico Marreiro, que por sua vez, já tomou de empréstimo do acervo do seu saudoso pai, o poeta canindeense Raimundo Marreiro, outro folclorista dos bons. Como dedicatória, Tonico escreve na página de rosto do livro essa décima:

“Este livro do Leota,
Que pertenceu ao meu pai,
Para o Pedro Paulo vai
Nas rimas, na mesma rota.
Nossa amizade que brota
Neste sertão escaldado,
Por ela tenho zelado,
Amizade tão dileta...
Nas mãos de você, poeta,
O livro fica guardado.”

Transcrevemos na íntegra o primeiro causo do livro Sertão Alegre:

“PARNAÍBA COMO É

Foi tentar a vida, em Parnaíba, no Piauí, um rapazelho semi-analfabeto e que jamais houvera visto uma vila ou cidade. Dias depois, escrevia ele à sua genitora uma carta de que copio, em seguida, vários tópicos, respeitando-lhes a íntegra, mas corrigindo um tanto a respectiva ortografia para mais fácil entendimento do leitor:
- ‘Mamãe, Parnaíba é uma cidade monarca de grande. Demanhãsinha se alvoroça tanta gente na beira do rio que parece formiga arredó de lagartixa morta e quase tudo é trabaiadô caçando ganho. O Mercado é outro despotismo: se arrreúne mais povo do que na desobriga, quando Padre diz Missa na Capela dos Morros, da dona Chiquinha. Tudo se vende; de tudo se faz dinheiro: fiquei besta de espiar gente comprando maxixe, quiabo, limão azedo, folha de João-gome e inté taiada de rirmum. O passadio daqui é bom. Todo dia eu como pão da cidade com manteiga do Reino.
Mamãe, as coisa aqui são muito deferente e adversa daí. As casa são apregada umas nas otura que nem casa de maribondo de parede e é quase tudo de telha e atijolada e tem umas delas calçada e forrada de tauba por riba que nem gaiola de xexéu e que chama sobrado. Gente rica aqui é em demasia. Inda onte numa loja eu vi uma ruma de dinheiro de cobre no chão que parecia juá, quando se ajunta mode dar pra bode em chciqueiro.
Mamãe, a Igreja faz inté sobroço, de grande e alta, cabe dentro dela todos os morador de Barra das Lage, do Bom Princípio, da Fazenda Nova e ainda se adiquere lugar para mais de cem vivente. O povo daqui tem um sestro muito engraçado: não diz ‘ô de casa’, não! Quando chegam nas casa aleia, batem palma como quem estuma cachorro mode acuar tatu em buraco.
Mamãe, a luz daqui é feita num tal de gazome; não precisa pavio nem trucida de algodão mode acender: é só distrocer uma torneira como quem tira cachaça de ancoreta e riscar um fósco que a luz acente biatamente e tão culara que faz é gosto! Se o cristão não acender mais que depressa, espaia um cheiro de cebola podre danado, diz que pru via dum tal de carboreto.
Mamãe, aqui tem um jogo chamado biá que não hái diabo que entenda, mas porém só joga nele gente de famia: é arredo duma mesa grande, forrada c’um pano, como baú de pregaria, e os jogador segurando umas vara mode empurrar umas bola que é ver ovo de ema. Quando estão jogando, dê por visto dois mexedor de farinha num forno de barro, ajeitando os rodo, mode não desmanchar os beiju.
Mamãe, aqui tem também um latejo invisive que é um tal de cinema. É só a musga tocar, aparece figura de gente, de animal e de rua, tudo prefeito, mesminho como se estivesse vivo e bulindo. O cinema é um pano esticado, parecido com vela de embarcação e é a coisa mais bonita e mais encantada que eu já vi.
Mamãe, cheguei onte da Tutoia. Fui nas barca da Companhia Busse mode trabaiá num vapor inguilês, ganhando dois minréis por dia e quatro por noite. Na Tutoia a gente vê o mar inté onde ele encosta nas parede do Céu. As barca sacode a gente chega faz dor de istambo e vontade de gumitar que nem urubu novo, tudo isso pru via do desassossego do mar. O vapor inguilês é um paidégua de grande, maior do que a vasante de fumo do compadre Domingo Preto e mais alto que o pé de tamarina da porta lá de casa. Os porão de botar carga são tão fundo que escurece a vista do cristão que espia. O pessoal que mora no vapor são tudo branco rozalgá, ôio azu e cabelo vermeio. A fala deles só pro diabo, não hái quem entenda: é uma embruiada como de piriquito em roça de milho novo. São danado por papagaio e por cachaça: dão inté roupa de gazimira novinha por um papagaio ou por uma garrafa de geribita. Quando os inguilês falam uns cós outro é uma trapaiada direitinha a de tia Damiana, adispois que teve a molesta do ar. Outra coisa engraçada que eu acho é os inguilês do vapor tudo se chamar piloto: mode coisa que os Padres da terra deles não batizam ninguém com outro nome.
Mamãe, pr’eu lhe contar tudo direitamente não hái papel que chegue. Vou acabar porque já me dói as boneca dos dedo de eu tanto escrever.”

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