sexta-feira, 3 de fevereiro de 2012

CRÔNICA




PERFUME DE MULHER

Raymundo Silveira*

Estava quase dormindo quando senti nitidamente aquilo que pensei se tratar de uma alucinação. Não era. Pelo contrário, era tão real que hoje, passados mais de quarenta anos, ainda sinto. Lembro, como se estivesse ocorrendo agora, o lugar o dia, o mês, a hora. Certamente, a surpresa repentina deve ter multiplicado por mil a intensidade daquela emoção. Eu tinha apenas treze anos incompletos e nunca havia experimentado aquilo antes nem em sonhos, embora instintivamente o desejasse com o ardor do adolescente  começando a sofrer os apelos sensuais da puberdade.
Naquele instante, porém, não existia o menor estímulo erótico. Não havia, nem remotamente, vestígio antecipado algum daquele acontecimento; o menor sinal de que uma coisa prodigiosa estaria preste a suceder. Subitamente, senti a suavidade de uns lábios fartos, mornos, úmidos e delicados tocarem levemente os meus. Tive um sobressalto seguido de um espasmo e de um estremecimento. Uma sensação deliciosa como nunca tinha provado. Entreabri os meus e as nossas bocas se fundiram. Sentia todo o meu corpo como se fosse uma tocha só a emanar labaredas por todos os poros. E o que era suavidade se transformou na mais louca sofreguidão. Tudo aconteceu como se um rastilho de pólvora de um pavio fantasma de dinamite tivesse, repentinamente, atingido o seu alvo, produzindo uma súbita explosão.
Uma basta cabeleira negra e sedosa encobriu a minha face. O seu cheiro junto com o cheiro natural exalado daquela fêmea em pleno cio, ainda estão presentes na minha memória olfativa no exato instante em que gravo estas letras na tela fria deste computador. E isto me faz sentir um pouco como se estivesse profanando um santuário. Aquele odor de mulher linda, jovem e sensual instigava o meu olfato, estimulava todos os outros órgãos a ele vulneráveis e um estremecimento de prazer percorria cada centímetro da minha pele e me fazia esquecer de tudo o que se passava ao meu redor.
Não há palavras para descrever o que resultava daquele atrito sôfrego e prolongado entre aquela boca e a minha boca; do enlace espiralado das línguas a se enrodilharem uma na outra como duas serpentes em pleno ato de amor; do bafejar mútuo e simultâneo dos nossos hálitos; do sabor das lágrimas que escorriam dos olhos, se misturando nos contornos dos lábios e sendo sorvidas juntamente com as nossas salivas deliciosamente promíscuas. É possível que se trate de exagerada fantasia, mas a sensação que ainda experimento agora é a de que a delícia daquele beijo jamais será superada, ainda que se reunissem em apenas um, todos os orgasmos que já tive e que eventualmente ainda virei a ter nesta vida.
É estranho como aquela comoção ainda se faz tão presente! É maravilhosamente esquisito como o cheiro daquela mulher ainda impregna tanto a minha olfação. É deliciosamente assustador como tudo é tão atual.
Contudo, na noite de um determinado dia que se passou quarenta anos depois daquele beijo, seguindo o conselho do ator Humphrey Bogart, a minha saudade me levou a querer estar três doses de uísque acima do que costuma ficar a humanidade, a fim de tentar reprisar aquele prodígio. Sob o efeito ilusório do monarca dos líquidos que é o álcool, telefonei para ela e fiz tudo o que pude a fim de ressuscitarmos juntos aquela emoção tão distante no tempo e tão presente na minha memória. Não se lembrava de nada. Ou fingiu não lembrar.

*Médico e escritor, autor dos livros “Louca Uma Ova” e “Lagartas-de-Vidro”, ambos premiados.


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