quarta-feira, 30 de novembro de 2011

COLABORAÇÃO


RECORDAÇÕES DE HIDROLÂNDIA

Francisco de Assis Freitas Silva

Outro dia relembrei dos bons tempos em que servi no destacamento da cidade de Hidrolândia, a terra das águas sulfurosas. Uma pequena cidade distante cerca de 130 quilômetros de Canindé, de povo ordeiro e acolhedor, dos quais ainda tenho boas lembranças e amizade sincera. Em 1998 fui lá para morar com minha família e trabalhar na companhia de meu irmão Eriberto e outros companheiros de farda sob a tutela do sargento, hoje subtenente, Ribamar. O trabalho era bem simples e as condições bastante precárias. Fazíamos o policiamento da cidade praticamente a pé. Às quartas e domingos pela manhã havia uma feira onde vendedores de outros municípios, como Ipu e Santa Quitéria, ofereciam diversos produtos, como frutas, legumes, feijão, rapadura e também confecções; então ficávamos no centro da cidade pela parte da manhã onde fazíamos também o policiamento externo do Banco do Brasil e ocasionalmente incursões nos três distritos do município, Betânia, Conceição e Irajá, em um veículo gol pertencente à polícia civil em lastimável estado de conservação, tão ruim estava, que o barulho da descarga que o mesmo fazia quando trafegava pelas ruas lhe rendeu o apelido de “trovão azul”.
À noite ficávamos na praça da matriz até às 23 horas, quando os alunos seguiam para os seus destinos na cidade e também na zona rural. Então, após uma ronda nos bairros, íamos repousar, ficando de sobreaviso para qualquer eventualidade. Em pouco tempo, a viatura foi devidamente aposentada e nós ficamos literalmente a pé. O comércio ilícito de entorpecentes, à época, era desconhecido dos policiais, fazendo com que as ocorrências mais corriqueiras fossem apenas embriaguez e desordem, brigas de casal e pequenos furtos, eventualmente. A cidade, para qualquer policial trabalhar era utópica.
O tempo foi passando e em 2002, ano da conquista do pentacampeonato mundial de futebol pela seleção brasileira, o inverno não era dos piores, e numa tarde de domingo por volta das quatro da tarde, mês de março ou abril, estávamos na delegacia eu e o soldado Villy, hoje sargento, quando chegou uma senhora de nome Maria, aparentando seus cinquenta anos de idade, semblante cansado, mas demonstrando ser forte, como assim são os sertanejos, pele fustigada pelo sol do sertão e com um ar de aflição e desespero. Ao entrar, ela foi logo relatando ao ‘seu Cordeiro’, como era conhecido o soldado Villy, que seu irmão desaparecera desde a manhã de sexta feira, afirmando que o ente querido havia saído de uma localidade denominada Riacho Verde, onde residia, com uma refeição para seu pai e um couro de carneiro para vender na feira de domingo, sendo que esta, ao chegar na manhã de sábado à casa do pai, um homem de seus setenta anos, foi logo perguntando pelo irmão e foi informada que o mesmo não chegara ao lar paterno.
Perguntamos se o ele possuía algum inimigo e ela citou que há pouco chegara um parente vindo do Maranhão que prometeu vingar a morte do avô. Ao relatar este fato, lembrei-me que, por volta dos últimos dias do ano de 2001, fomos acionados para uma ocorrência na mesma localidade, onde um homem havia lesionado um casal a golpes de faca, e este, segundo relatos das vítimas, chegara há pouco tempo das terras do honorável senador José Sarney. No momento deste fato, por volta das 21 horas, estava acontecendo uma comemoração por conta da reeleição do prefeito Luis Antonio de Farias e tivemos que nos deslocar até a localidade em questão e tentar prender o acusado, o qual não esperou tempo ruim e tomou rumo ignorado.
Retornamos para a cidade e fomos para a delegacia que ficava a poucos metros da comemoração e constatamos que a mesma havia sido arrombada e de seu interior furtado três armas de fogo, fruto de apreensões e com os inquéritos inconclusos. Posteriormente após uma investigação, descobrimos o autor da façanha, um menor conhecido por Paulo Sujeira, e recuperamos as armas roubadas. Saliento apenas que o prédio da delegacia era somente um quarto com banheiro às margens da CE 257 e sem a menor segurança. Voltemos então a nossa principal história.
O pai de dona Maria e do desaparecido era um ex-presidiário, apenado por prática de homicídio contra o próprio irmão, uns quinze anos antes, justamente o avô do acusado do desaparecimento. Findo o relato, pegamos a “viatura” que dispúnhamos – um gol vermelho, bem melhor que o trovão azul, que fora usado em um assalto ao Banco do Brasil de Santa Quitéria, apreendido pela justiça e emprestado a polícia de Hidrolandia, já que não dispúnhamos mais de veículo oficial – e nos deslocamos então até o lugarejo Riacho Verde. No local conseguimos uma D-20 emprestada de um comerciante e a deixamos na estrada alguns quilômetros depois, já que não dava mais para seguir em frente e fomos a pé o restante do caminho, passando por cercas e riachos, sendo necessário, em certos trechos, tirar as botas para que não se molhassem. Quando chegamos à casa do acusado no começo da noite, o chamamos e ele logo se apresentou, sendo rendido por nós, procedida uma busca de armas e em seguida o algemamos. Indagado a cerca das acusações que lhes eram imputadas, o mesmo respondeu com as seguintes palavras: não dou notícias desse povo, em seguida ajoelhou-se e ratificou o que disse: juro pela luz dessas estrelas que me iluminam que não sei e nem dou notícia desse povo.  Após, seguimos em direção a cidade e no caminho fiquei momentos a sós com o acusado, que se chamava Raimundo Mororó, enquanto que o soldado Villy seguiu em busca de um segundo suspeito, logo retornando com o acusado devidamente algemado.
Em volta da delegacia logo se formou uma multidão de curiosos. O segundo suspeito provou sua inocência e foi liberado, enquanto Raimundo negava com veemência, afirmando também ser inocente. Nesse meio tempo chegou um vereador, parente de vítima e acusado, que se ofereceu para intermediar a conversa. O vereador Evaristo Mororó chegou para o acusado e disse que se ele foi homem para matar também o fosse para assumir a autoria: “Raimundo, você jurou vingar a morte do seu avô, se foi você, seja homem e assuma o crime.” Nesse momento estávamos bastante cansados, molhados e sujos de lama, os cintos de guarnição com as armas tinham sido postos em cima de uma mesa, o homicida, ainda algemado, ficou de pé, olhou para nossas armas (momento em que achei que ele fosse esboçar alguma reação) e confessou secamente: “Fui eu. Vamos lá que eu mostro onde enterrei o defunto”. De volta ao local da captura do homicida, com a ajuda de populares, desenterramos a vítima, bem como o assassino nos mostrou onde escondera a arma utilizada, a carteira ainda com algum dinheiro e também uma bolsa contendo comida e uma pele de animal.
Com o objeto utilizado no hediondo ato, cortei um galho de jurema e consegui também uma rede, que foi utilizada para o transporte do cadáver, como nos cortejos fúnebres de antigamente, já que nessa época o IML só funcionava mesmo em Fortaleza. O corpo foi conduzido para o hospital de Hidrolândia, onde o médico plantonista, fazendo às vezes de legista, fez a necropsia, sendo constatado que a vítima sofrera nove perfurações, a maioria no tórax e uma no pescoço.
O assassino confesso foi recolhido à cadeia pública de Santa Quitéria por temermos represálias da família; posteriormente foi apenado com treze anos de reclusão no regime fechado, que evoluiu depois para o regime semi-aberto e hoje já está em total liberdade passados menos de dez anos do fato. Podemos supor com esta narrativa que o código de processo penal no Brasil parece ser ainda muito deficiente; os crimes mais comuns, assalto e homicídio, deixam graves sequelas psicológicos em vítimas (quando estas não morrem) e seus parentes, quando cruzam com seus algozes pelas ruas e avenidas das cidades em completa liberdade quando, pela pena aplicada, deveriam ainda estar em clausura. Juízes e promotores ficam de mãos amarradas e têm que pôr em prática as leis escritas no código de processo penal, enquanto assistimos às pessoas dizerem nas esquinas que nossas leis são ineficientes e ajudam a fomentar a impunidade e a violência; e só quem perde com um crime realmente não é quem fica preso ou a família da vítima, mas quem perdeu a vida. Dizem ainda que a polícia prende e a justiça solta, quando na realidade a polícia prende e a justiça apenas executa as nossas frágeis leis.

NOSSA LÍNGUA
Farnezim Incômodo, nervoso, agonia, no PI e na PB. Corruptela de frenesi, segundo a Grande enciclopédia internacional de piauiês, de Paulo José Cunha. 

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