sexta-feira, 26 de agosto de 2011

O LIVRO O POVO BRASILEIRO,
DE DARCY RIBEIRO

Impressionaram-me vivamente, dentre muitas  outras, duas passagens do livro O Povo Brasileiro, do saudoso antropólogo, romancista e político Darcy Ribeiro, intelectual criador de uma nova e original teoria da formação da civilização, reconhecida mundialmente na comunidade científica. Além de teórico notável, Darcy Ribeiro foi um homem prático, ministro da Educação e chefe do Gabinete Civil do presidente João Goulart, além de fundador da Universidade de Brasília e idealizador dos CIEPs, que receberam outras denominações dadas por governos recentes. Nesta oportunidade, apresentarei aos leitores a primeira dessas lindas passagens (há muitas outras, para satisfazer a todos os gostos) da admirável obra de Darcy, que sabia com tanta originalidade utilizar uma linguagem científica impecável e ao mesmo tempo romântica, poética. (Flávio Henrique M. F. Lima)

“Esse foi o primeiro efeito do encontro  fatal que aqui se dera. Ao longo das praias brasileiras de 1500, se defrontaram, pasmos de se verem uns aos outros tal qual eram, a selvageria e a civilização. Suas concepções, não só diferentes mas opostas, do mundo, da vida, da morte, do amor, se chocaram cruamente. Os navegantes, barbudos, hirsutos, fedentos de meses de navegação oceânica, escalavrados de feridas do escorbuto, olhavam, em espanto, o que parecia ser a inocência e a beleza encarnadas. Os índios, vestidos da nudez emplumada, esplêndidos de vigor e de beleza, tapando as ventas contra a pestilência, viam, ainda mais pasmos, aqueles seres que saíam do mar.
Para os que chegavam,  o mundo em que entravamera a arena dos seus ganhos, em ouros e glórias, ainda que estas fossem principalmente espirituais, ou parecessem ser, como ocorria com os missionários. Para alcançá-las, tudo lhes era concedido, uma vez que sua ação de além-mar, por mais abjeta e brutal que chegasse a ser, estava previamente sacramentada pelas bulas e falas do papa e do rei. Eles eram, ou se viam, como novos cruzados destinados a assaltar e saquear túmulos e templos de hereges indianos. Mas aqui, o que viam, assombrados, era o que parecia ser uma humanidade edênica, anterior à que havia sido expulsa do Paraíso. Abre-se com esse encontro um tempo novo, em que nenhuma inocência abrandaria sequer a sanha com que os invasores se lançavam contra o gentio, prontos a subjugá-los pela honra de Deus e pela prosperidade cristã. Só hoje, na esfera intelectual, repensando esse desencontro se pode alcançar seu real significado.
Para os índios que ali estavam, nus na praia, o mundo era um luxo de se viver, tão rico de aves, de peixes, de raízes, de frutos, de flores, de sementes, que podia dar as alegrias de caçar, de pescar, de plantar e colher a quanta gente aqui viesse ter. Na sua concepção sábia e singela, a vida era dádiva de deuses bons, que lhes doaram esplêndidos corpos, bons de andar, de correr, de nadar, de dançar, de lutar. Olhos bons de ver todas as cores, suas luzes e suas sombras. Ouvidos capazes da alegria de ouvir vozes estridentes ou melódicas, cantos graves e agudos e toda a sorte de sons que há. Narizes competentíssimos para fungar e cheirar catingas e odores. Bocas magníficas de degustar comidas doces e amargas, salgadas e azedas, tirando de cada qual o gozo  que podia dar. E, sobretudo, sexos opostos e complementares, feitos para as alegrias do amor.”

(Darcy Ribeiro. O Povo Brasileiro: A Formação e o Sentido do Brasil. 2ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1995 – pp. 44-45.)

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