LUTO NAS LETRAS
CEARENSES
Morreu na manhã
de hoje, em Fortaleza, aos 72 anos, o médico e escritor Ray Silveira. Nascido em
Massapê, Ceará, autor premiado nacionalmente e membro da Sociedade Brasileira
de Médicos Escritores (Sobrames), Silveira destacou-se na crônica e no conto, publicando pelo menos quatro livros, além de diversos artigos e ensaios em jornais,
revistas e sites.
Em 2010, ganhou
o Prêmio Literário para Autores Cearenses (Secult), com o livro de crônicas “Louca
uma Ova”. No ano seguinte, conquistou o Prêmio Concurso Nacional de Poesia – Correio
das Artes 60 Anos, promovido pelo Governo da Paraíba, com o livro de contos “Lagartas-de-Vidro”.
Em 2015, lançou “Amadadama”, também de contos. Foi bolsista da
Funarte/Ministério da Cultura (Bolsa de Criação Literária, 2010), tendo
produzido a obra “Medicina Crônica”. Em 2013, recebeu o Prêmio Talentos da
Maturidade, promoção bienal do Banco Santander, pelo conto “Gozo Precoce”.
Durante onze
anos, Ray Silveira foi membro do Conselho Editorial da Revista Feminina, onde
publicou artigos científicos. Tem ainda trabalhos publicados em outras revistas
e livros médicos. Sua atividade literária cresceu com o advento da internet. O site
italiano DOMIST, por exemplo, traduziu e publicou alguns dos seus textos em
inglês, francês, espanhol, alemão e italiano.
Ray Silveira
empreendeu também diversas viagens à Europa e Ásia, onde colheu subsídios para
diversas crônicas em que descreve suas impressões do Velho Mundo. As crônicas
foram publicadas em sua página na internet e em jornais e revistas especializados.
SOB O LUAR DE
SEVILHA
Ray Silveira
Escrevo, tendo diante de mim uma
velha foto esmaecida de meu avô materno, a quem, infelizmente, não conheci em pessoa.
Conheço, sim, nossa genealogia – desde o primeiro ancestral lusitano que
aportou terra brasileira, de nome Manoel Ferreira Fonteles, nascido no século
XVII no lugarejo Fontelo, próximo a Meixomil, situada na região de Entre D'Ouro
e Minho –, até a geração atual. Se William Shakespeare tivesse visto a
fotografia do meu avô, estou quase ciente de que seria nela que ele teria se
inspirado para descrever o seu Otelo. Apesar da descoloração advinda do fluir
dos anos, os traços do pai de minha mãe não deixam dúvidas: o negro brilhante
dos olhos; o olhar alerta, viril, como se estivesse a espreitar virtual
inimigo; a tez trigueira; o formato da testa e do rosto; a coloração dos
cabelos, enfim tudo, me leva a suspeitar fortemente de que naquelas veias
correu muito pouco sangue fenício, celta e menos ainda grego ou romano.
Estive em Sevilha por duas vezes.
Em nenhum instante me senti no continente europeu. Como até então não conhecia
o mundo árabe, não conseguia relacionar aquela cidade a nada que me fosse
familiar, exceto à fotografia do meu avô, cujo "facies" percebia
reproduzido nos sevilhanos. Mesmo assim sentia no ar, além da morna brisa quase
mediterrânea, um não sei quê de passado; de sonhos da infância; de histórias
lidas e relidas das “Mil e Uma Noites”. Com efeito, os sarracenos colonizaram a
Península Ibérica durante mais de setecentos anos. Sete séculos! Quantas
gerações! Se considerarmos somente a Andaluzia, onde a presença moura foi muito
mais efetiva, não deveriam restar dúvidas: aquela região espanhola não tem nada
da Europa. A fim de ser mais objetivo, devo lembrar certos fatos, lugares e
costumes que presenciei.
Em diversos bares, restaurantes e
outras casas noturnas, por exemplo, pude constatar uma estranhíssima mixórdia
melódica. De um lado, uma máquina de som a reproduzir a todo volume, canções da
música pop ocidental. No mesmo recinto, um segundo aparelho a emitir o som
plangente, gutural, arrastado, misterioso, característico da música árabe. Mas
a marca definitiva da presença daquele povo na Andaluzia está na arquitetura.
Os próprios vilarejos à margem das estradas já denotam que se está a transpor
fronteiras. Todas as habitações, por exemplo, são invariavelmente pintadas,
cuidadosamente, de branco. O genial poeta e mártir andaluz Frederico Garcia
Lorca tem um lindo verso sobre sua terra natal que sintetiza bem o que quero
dizer: “Oh blanco muro de España”.
Estive naquela cidade em duas
ocasiões e o inesperado, o fortuito, o surpreendente foi que me senti ali como
se estivesse retornando à terra dos meus antepassados. Minhas primeiras
impressões do lugar vieram dos aspectos arquitetônicos, como sucede todas as
vezes que visito uma cidade de origem mourisca. Ainda não atinei bem com este
meu antigo “namoro”; em outras palavras, não consigo uma explicação lógica para
o motivo pelo qual a arquitetura árabe me fascina tanto. Não quero emitir neste
texto conceitos ou opiniões volúveis, mas existe um “não sei quê” na cultura
sarracena que me atrai, além do que seria razoável. Partindo da área comercial –
no centro de Sevilha – e correndo em direção aos prédios governamentais, há uma
estreita viela onde não transitam veículos mas que é uma importante via de
pedestres. É conhecida simplesmente como “Sierpes” e lá estão situadas as lojas
mais deslumbrantes da cidade e os restaurantes mais famosos.
Outra atividade prazerosa do
lugar é desfilar de carruagem alugada pelas ruas principais. Tem-se a sensação
de se estar a passear na Sevilha do século passado. O hotel onde fiquei, em
tudo me trazia à memória as cenas mais surreais de “Este Obscuro Objeto do
Desejo” de Luís Buñuel. Mas o que mais me encantam em Sevilha são três magníficas
construções: a Catedral, a Giralda e o Alcázar . A primeira fica no centro da
cidade, pode ser avistada a alguns quilômetros de distância e é o segundo ou terceiro
maior templo da Europa. Basta dizer que comportaria, em seu interior, Notre
Dame inteira. Suas naves são tão largas que, durante as procissões da Semana
Santa, andores que normalmente evitam certas ruas da cidade – como a Sierpes,
por exemplo – passam tranquilamente através delas.
“La Giralda” (cata-vento) é o
símbolo da cidade! Fica ao lado da Catedral e trata-se de gracioso minarete
mourisco que foi construído juntamente com a mesquita original a qual foi
demolida para dar lugar ao templo católico, quando da expulsão dos mouros. Os
amoádas – dinastia de origem berbere que dominou o sul da Espanha e o norte da
África entre os séculos XII e XV – foram os construtores da Giralda. É curioso
observar como os historiadores espanhóis intentam omitir a participação deste
povo – os bérberes – na dominação da Península Ibérica durante todo aquele
período. É um preconceito! Mas não há como fugir da verdade.
Ironicamente, o exemplar mais
belo, mais portentoso, mais majestoso da arquitetura mourisca que vi em Sevilha,
é obra de um Rei Espanhol. Em 1366, Pedro I de Castela, respeitando o quanto
pôde as ruínas que encontrou do antigo domínio mouro, erigiu a maravilha que é
o Alcázar sevilhano. Na suntuosa fachada do edifício pode-se ler reiteradas
oito vezes a sentença: “...no vencedor sino Alá”. Ao redor do grande Pátio da
Donzelas estão os três salões de recepção: à frente, o dos Embaixadores, em
cujas portas e em caracteres africanos cantam-se as glórias de “nosso senhor o
Sultão” engrandecido e mui elevado dom Pedro, rei de Castela e de León; à
direita, o Dormitório dos Reis Mouros, no qual se lê: “Glória a nosso senhor, o
Sultão Dom Pedro, que Alá o ajude e proteja”; à esquerda, o Salão de Carlos V,
porque nos tempos do Imperador se lavrou seu artesanato magnífico.
É assombroso pensar como um povo –
hoje aparentemente tão afastado da Península Ibérica – pôde dominar aquela região
por tanto tempo. Sua expulsão somente foi possível após décadas de lutas
renhidas. Por esta época, Córdova já era uma grande metrópole enquanto Londres
ainda marcava passos como uma quase insignificante província. Enquanto Colombo
chegava ao Novo Mundo, Granada ainda resistia nas mãos daquela gente que só se
rendeu exatamente no ano do descobrimento das Américas.
23/09/15
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