O ENTERRO DE UMA TRADIÇÃO
Pedro Paulo Paulino
Há mais de cem
anos que em Vila Campos, interior de Canindé, no mês de agosto realiza-se a
festa de São Roque, padroeiro da povoação. Nesse período, o lugarejo
engalana-se, feliz, acima de tudo, por acolher seus filhos que, por
circunstâncias da vida, separam-se a maior parte do tempo. É o momento de alta estação na vida do
lugar. Hora do reencontro fervoroso de familiares e de amigos. Hora de festejar
tradições e honrar costumes, homenagear entes queridos e rememorar coisas que
vão ficando na esteira do tempo. A maioria de nossos parentes mora em
Fortaleza ou fora do estado. Mas não há distância nem dificuldade que os impeça
de comparecer ao encerramento dos festejos.
A programação inclui
novenário, em que os fiéis prestam contam de sua fé com o santo; missa festiva
de encerramento, animado leilão e festa dançante à noite, já que ninguém é de
ferro, nem mesmo São Roque. No leilão
tem galinha caipira assada no forno, o capote, o carneiro, o boi e outras prendas
doadas pelos fiéis e arrematadas em lances que se disputam calorosamente no compasso
do fole da sanfona, tudo regado a uma boa cerveja. Até o sol, a poeira e o
calor deste período do ano são bem-vindos. No fim das contas, a quermesse é de
caráter beneficente e quem lucra é a igreja.
Pelo menos era
assim, desde os primeiros anos do século passado até nossos dias. Este ano,
contudo, a festa encerra-se em branca nuvem, melancolicamente. Em vez do
animado leilão e da expectativa do baile à noite, após a missa festiva, na
manhã deste sábado, os fiéis acompanharam em silêncio o enterro de uma tradição
secular em Vila Campos. O sepultamento do viés folclórico, cultural e
genuinamente nosso. Por
determinação de autoridade religiosa, foi terminantemente proibida a realização
de eventos recreativos paralelos ao rito católico. Nem leilão nem festa. Nem
quermesse nem dança. Tudo santificado e puro como o Éden antes do pecado
original.
Alheio à tradição secular de um povo,
alguém achou-se no direito de manietar e engessar rudemente uma tradição
congênita, um costume organicamente transmitido de geração a geração. Vila
Campos, tão neutra e pacífica, de povo hospitaleiro e folgazão, tornou-se fatalmente
vítima da fúria destruidora de costumes e culturas que começou na cidade de
Canindé, onde é notório, várias tradições, materiais e imateriais, ligadas à grandiosa
festa de São Francisco, foram nos últimos anos estupidamente dilapidadas,
abolidas, por mãos arrogantes e insensíveis. Tomando medidas radicais e
antipáticas como essa, desejará talvez algum desavisado religioso consertar o
mundo. Convém lembrar, todavia, que o conserto do mundo, sob hipótese alguma,
jamais começará por Vila Campos, onde a tradição é que é sagrada; destruí-la é
que é profano. Repudiamos veementemente a ideia absurda e retrógrada de quem
aboliu, este ano, o lado recreativo de nossa festa. Mais atual que o dono dessa
ideia insolente estava o sábio grego Eratóstenes, embora há mais de dois mil
anos, quando disse: “Uma vida sem diversão é como um caminho sem hospedaria”.
O leitor e colaborador deste blog, Dr. Maurício Moreira Cardoso, envia por e-mail o seguinte comentário.
ResponderExcluir"Deve ser por atitudes como essa do sacerdote ditador que ninguém quer ir pro céu. Se no paraíso não é permitido expressar alegria, comemorar o começo e o fim de um saudável empreendimento, então mude de nome, e passe a se chamar Monotoniso ou Cemitério Celeste; que tal?!" (MMC)