OCORRÊNCIAS
INCOMUNS
Freitas
de Assis*
Já
mal despontam os primeiros raios de sol no horizonte e tem início a rotina
diária em lares de todo Brasil. Com certa dificuldade e preguiça estampada na
face, crianças e adolescentes seguem para o colégio enquanto seus pais cuidam
do lar ou vão para a labuta rotineira buscando prover o sustento dos seus. Além
de alimentos, roupas, por vezes remédios e algum supérfluo, em nossa terra,
além dos itens citados, existe a necessidade de se obter água nestes tempos de
escassez e seca inclemente. E a água que nos chega, e quando chega, é de duvidosa
qualidade e procedência. Infelizmente é preciso que nos viremos com o que temos
e rogar que nossos gestores tenham compaixão do povo e busquem soluções para este
secular flagelo que nos persegue. Como
devotado pai de família, também sofro com a inconsistência do abastecimento em
nossas torneiras, obrigando-me a comprar de carros-pipa, ou vez por outra
recorrer ao vigor de meus braços para conseguir água, transportando-a de poços
profundos, em baldes e garrafões. Mas apesar do esforço considero uma atividade
que de certa forma me dá satisfação; talvez pelo simples fato de lidar com água,
calmante natural, ou por que sacio a sede do meu lar.
Fora
estes percalços domésticos, minha rotina de trabalho ainda está resumida a
patrulhar as ruas de minha cidade a bordo de uma viatura com mais de cinco anos
de uso, que já teve seus dias de glória e hoje, com mais de 350 mil quilômetros
rodados e com a manutenção deixando um pouco a desejar, já não se pode dizer
que é um carro de luxo, e nestes dias de fins de setembro e começo de outubro,
que se aproxima com uma atemporal Festa de São Francisco por conta das eleições
e com o ar-condicionado da viatura quebrado, já registramos no interior desta temperatura
de 44 graus positivos. Uma sauna. Mesmo que haja certo desconforto, nosso
trabalho é essencial e embora acarrete riscos à nossa integridade física,
nossos turnos de 12 horas de serviço, alternados entre um período diurno outro
noturno, sempre nos reservam alguma ocorrência inusitada, a qual, embora não
possa ser classificada como um acontecimento fantástico, é no mínimo incomum.
Outro
dia, já é quase meia noite e o COPOM, através do rádio transceptor da viatura,
solicita nossa presença próximo da Praça Dr. Aramis, onde o policial Guedes,
que estava de folga, pedia um apoio da patrulha. No local, perto da praça, na entrada
da rua Raimundo Alcoforado, estavam dois elementos rendidos por ele, alguns
curiosos e um portão de ferro ao solo, supostamente furtado por um dos abordados.
Guedes me informa que sua vizinha ouvira um barulho e ao verificar do que se
tratava, ficou surpresa quando viu nas sombras da noite um homem levando o portão
de sua residência. A vítima chama o vizinho policial, que segue o criminoso por
um caminho paralelo em sua moto, interceptando-o no local onde ora nos
encontrávamos. Um dos suspeitos disse que apenas estava em local e hora errados
e nada tinha a ver com o fato. Quanto ao segundo, este foi visto pelo policial
com o portão no ombro e o largou no instante da abordagem, mas mesmo assim
negou o fato e disse que era um trabalhador. Diante das circunstâncias, dei voz
de prisão ao acusado e o conduzi com o produto do crime ante a presença da
autoridade policial. Mas antes de entrar no xadrez da viatura falou mais uma
vez que era inocente e também portador do vírus HIV. Felizmente estava ileso,
não ofereceu qualquer resistência e não corremos qualquer risco. Na delegacia
foi autuado por furto.
Embora
não seja um furto comum, não é a primeira vez que atendo a uma ocorrência onde
o objeto furtado seja o portão de uma residência ou o acusado portador de AIDS.
Mas em quase toda situação de furto existe pelo menos mais dois criminosos
envolvidos. O primeiro é o receptador, que se não existisse, não haveria furtos.
O segundo envolvido é o traficante de drogas, que é quem mais lucra na
situação, principalmente quando o produto do furto é de fácil venda, como aparelhos
celulares que nas mãos de viciados são trocados por ninharias.
Sobre
o tráfico de drogas, estamos em ano de eleições e a maioria dos candidatos fez
vãs promessas em busca do voto de incautos eleitores. E como um assunto leva a
outro, nesta campanha eleitoral havia uma diversidade gigantesca de propostas
hilárias e esdrúxulas, dentre as quais, também relacionada ao tema violência, está
a de um candidato a deputado propondo, nos escassos segundos a que tinha direito,
a instalação de artefatos nos caixas eletrônicos dos bancos, que exalariam gás
venenoso em caso de tentativa de arrombamento por parte de assaltantes, onde os
bandidos tombariam sem vida. Agora se este sonhador fosse eleito e seu homicida
projeto aprovado, teríamos que torcer, ou então rezar, para o caixa não
apresentar defeito e o cliente não ter que sair do banco num caixão de madeira.
E
em mais um dia de serviço outra ocorrência “exótica”. Esta foi pela manhã. Eram
pouco depois de sete horas e o rádio da viatura desta vez conclama-nos para
irmos até a cadeia pública para uma escolta de detentos. Diariamente existem
escoltas de presos da justiça para o fórum ou para o hospital, neste último caso
para serem medicados. Ocorre que ao chegarmos à cadeia pública de Canindé, já
vemos a inusitada cena: uma mulher jovem, morena, de alguma beleza e olhos expressivos
estava algemada ao lado do agente penitenciário. Nossa missão não seria
conduzi-la ao fórum para uma audiência, nem tampouco para medicá-la no hospital.
Nossa missão era levá-la até a Casa Abrigo, localizada no CSU, onde crianças e
adolescentes em situação de risco ficam abrigadas. Lá, a detenta iria amamentar
seu filho menor de um ano de idade. Ela estava detida pelo mesmo motivo que a
maioria das mulheres encarceradas no Brasil o são: o tráfico de entorpecentes. Chegando
ao local, a criança já não mais estava. Sua família, mãe e irmã da detenta a levaram
para Fortaleza, onde residem. Ao receber a notícia de uma funcionária da
instituição acolhedora, lágrimas escorrem dos olhos da
jovem mãe e ela nos roga que a levemos até o terminal rodoviário para tentar
ver o filho; e lá estava a criança com a avó e a tia, juntamente com dois irmãos
mais velhos. Desembarcamos da viatura, o agente retira-lhe as algemas e observamos
o reencontro de uma família separada pelas drogas. Uma cadeira é providenciada
e uma mãe oferece o seio ao filho. Instantes depois, em meio a beijos, abraços
e brincadeiras, o sonho se dissipa. Vem a despedida e o retorno ao cárcere, em meio
ao olhar de passageiros curiosos com a comovente e incomum cena. Na cadeia ela
desembarca com o agente, agradece com um muito obrigado e deseja-nos boa sorte.
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*Cabo PM, colaborador do Blog.
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