O mais notável poeta e escritor vivo do Brasil, Glauco Mattoso, em crônica recente menciona Canindé e um símbolo da romaria.
A QUINCTA DIMENSÃO
E O SEXTO
SENTIDO
Por Glauco Mattoso
Quem não é cego de nascença e perdeu a visão na
meia edade, como eu, tem registros tridimensionaes bem nitidos na memoria, alem
da obvia noção de perspectiva que deforma os objectos dependendo do angulo de
observação, como naquella famosa tela de Dali focando um Christo crucificado
visto de cyma para baixo, ou naquellas embalagens que replicam uma figura dentro
de si mesma, successivamente menor, até que desappareça do olho nu, mas
presuppondo infinita visualização com algum effeito de lente de augmento, como
os tradicionaes rotulos do fermento Royal e do óleo Maria. Si não me enganno, a
banda Pink Floyd usou esse recurso na cappa do album UMMAGUMMA, alguem me
confirme ou desminta. Podolatra que sou, minha casa sempre guardou innumeros
itens decorativos representando pés e calçados de todo typo, mas, depois de
cego, só posso continuar usufruindo das peças tridimensionaes. Dos quadros e
posters ficou apenas a lembrança: um chartaz do sorvete Gelato com a photo dum garoto
prestes a lamber um picolé no formato dum pé descalço, o "Perepepé";
a impressão plantar em tamanho natural do pé do Jackie Chan; dois chartões
postaes com a photo do pé da estatua de Constantino, a mim enviados em
differentes datas por João Silverio Trevisan e por Néstor Perlongher, quando
passaram por Roma; dois quadros com xerocopias dos pés de Hudinilson Junior,
feitas pelo proprio artista plastico na phase em que documentou seu corpo nu e
presenteou os amigos com imagens de cada zona anatomica, e assim por deante. A
proposito, aproveito para render meu tributo à rte postal, mural e corporal,
que eu chamaria de "symplastica", desse legitimo expoente da vanguardista intervenção urbana, recentemente
fallecido, e me disponho a doar os dois quadros xerographicos a quem esteja na
curadoria da obra do Hudinilson. Entretanto, ainda posso desfructar dos
objectos palpaveis espalhados pelo mobiliario, taes como bibelôs, estatuetas,
cinzeiros, miniaturas, brinquedos, penduricalhos e ex-votos, tudo reproduzindo
sapatos, botas, cothurnos, tennis ou pés descalços. Destes, meus xodós são
presentes que recebi de Canindé e outros centros de romaria, para onde os
devotos levam, em pagamento de promessas, esculpturas de madeira representando partes
do corpo "curadas" por obra e graça divinas. Algumas dessas esculpturas
são verdadeiros exemplos de arte popular anonyma, detalhando tornozelos, curvas
plantares, tendões, artelhos, unhas, inclusive o dedão menor nos casos de pé do
typo grego, formato que fascina meu fetichismo. Vez por outra algum amigo, como
o poeta cearense Sylvio Roberto Sanctos, se lembra de que continuo me alegrando
ao ganhar taes mimos e, deliciosamente surpreso, abro a caixa contendo mais um
ex-voto para a collecção. Por fallar em
dimensões e em memoria visual, sei onde está cada quadro e qual imagem está
emmoldurada nelle, como sei onde está cada ex-voto e qual typo de pé está
esculpido nelle. Locomover-me pela casa, à luz do dia ou na escuridão da noite,
é-me indifferente do poncto de vista das referencias espaciaes e concretas, ja
que desvio dos obstaculos por força do habito e me desloco com relativa
desenvoltura. O que me impressiona é uma especie de radar abstracto, à guisa de
percepção extrasensorial, que me faz evitar obstaculos imprevistos, não só
dentro de casa, e me poupa por um triz de algum accidente. Claro que, de vez em
quando, fico desattento, batto a testa ou dou cannelladas, solto um palavrão e
provoco gostosas gargalhadas naquelles leitores que curtem meu masochismo. Mas
o presentimento da collisão não é o unico effeito dessa percepção
extrasensorial: consigo detectar até as más vibrações e as energias negativas
emittidas pelas pessoas que me rodeiam, o que já constitue assumpto para outra
chronica. Por emquanto, limito-me a illustrar este aponctamento com dois
sonetos pertinentes e a reiterar a intenção de doar os quadros do Hudinilson.
Até a proxima!
SONETO DO UNIVERSO DENTRO DO OLHO
[1499]
Algumas embalagens são lembrança
curiosa: oleo Maria, a do
fermento...
Na latta, a propria latta ninguem
cansa
de ver reproduzida um só
momento...
É como na TV, quando se alcança
que a imagem se reflicta: o
pensamento
reduz-se ao infinito, a mente
avança
até que o menor poncto ganhe
augmento...
Si dentro dum espelho se replica
o mesmo espelho, indago: onde é
que fica
o fim? Só no limite da visão?
E quando o cara é cego? Sei que a
latta,
no fundo, bem no fundo, só
retracta
a minha propria cara, olhando em
vão...
Attenção! Quaesquer textos assignados por Glauco Mattoso estarão em desaccordo
com a orthographia official, pois o auctor adoptou o systema etymologico
vigente desde a epocha classica até a decada de 1940.
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Com a colaboração de Sylvio R. Sanctos.
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Com a colaboração de Sylvio R. Sanctos.
Li este texto no jornal de mão em mão e algumas pessoas me perguntavam sobre a ortografia e se o texto era do Sylvio; então explicava o porquê da forma de escrita, parecendo que alguns que leram o texto não viram a nota de rodapé e também não sabiam da amizade entre os dois poetas. Conheço o trabalho do Glauco desde os tempos da Banana Purgativa, publicada na revista Chiclete com Banana.; vi outros trabalhos dele em outras publicações inclusive na revista Caros Amigos. Um grande poeta e escritor.
ResponderExcluirFreitas.
Exato, Freitas. O Glauco também teve a fase visual, um grande e múltiplo artista. srs
ExcluirGrato pelo comentário, caro Freitas, leitor ideal.
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