MEMÓRIAS DO BAR DO TOINHO…
A extinção de um bar siginifica para seus frequentadores habituais uma espécie de orfandade. Fica no espaço aquele vazio perene. Para os saudosistas, uma nostalgia sem consolo. E quando o estabelecimento é ponto de tradição, seu fim particulariza uma época e uma geração inteira.
Toinho e o engraxate Risadinha (esquerda) |
Cerrou suas portas em Canindé o Bar do Toinho (ex-lanchonete Marcos & Marcos), ponto comercial pequeno no espaço físico mas grande no serviço. O cenário interior se destacava por uma grande tela pintada pelo artista Isaías Costa, mostrando em primeiro plano São Francisco sentado e cercado por pássaros; ao fundo, a igreja do santo de Canindé. Era tudo o que havia de imaculado naquele ambiente. A meu ver, pela utilidade que tinha, o Bar do Toinho, a despeito da eficiência, estava mais para empresa pública do que particular. Situado no coração da cidade, em frente à praça Tomás Barbosa, era frequentado por uma fauna expressiva, incluindo personagens singulares e tipos de rua. A vizinhança, em geral – comerciários, camelôs, engraxates, garis, cambistas, além de vendedores ambulantes, pedintes, desocupados –, diariamente se servia daquele espaço. Logo na entrada havia o pote dágua com um caneco à disposição. E todos, indistintamente, iam ali, para usar a pia, o espelho, o palito de dente, o fósforo, o guardanapo, o cafezinho, tudo isso na base da camaradagem.
Um dos departamentos mais procurados, entretanto, era o banheiro, um cubículo que servia também de depósito para os vasilhames de cerveja e refrigerante. Tendo em vista a escassez de sanitário público nas imediações, o do Bar do Toinho prestava um serviço sem dúvida imenso. Acresce que, além da sua verdadeira função, o banheiro ainda servia de provador para os clientes de uma banca de confecção que havia na calçada.
Por trás, o pote dágua na calçada |
Era um movimento desordenado durante todo o dia. Mas o que mais caracterizou o Bar do Toinho foi a presença habitual de outro segmento. Desde sua fundação, aquele local tornou-se o centro de gravidade que atraía uma plêiade de poetas e escritores boêmios. Também pudera! Situado entre a Casa Marreiro, do poeta Natan, e a loja Chapéu de Couro, do escritor Cesar Menotti, o Bar do Toinho aninhava um agrupamento inusitado que chegava a chamar a atenção dos transeuntes. Os poetas ali se ajuntavam em reuniões bem regadas e barulhentas. (Convém lebrar, entanto, que a direção do estabelecimento só liberava a venda de bebida alcoólica depois do meio-dia, quando cessava a freguesia do caldo com pastel, exlcusividade da casa. Só então começava a chegar a clientela da pinga e da cerveja.)
Carlos Mandrinni |
Nos finais de tarde, já era vistosa a confraria. Pontificavam ali com mais assiduidade o poeta Mário Lira, com seu soneto mais recente; Celso Góis, com uma décima rabiscada; Arievaldo, com um cordel de gracejo; Gonzaga Vieira, com o jornal da véspera; vez por outra o médico João Paiva, recitando sonetos do Padre Antonio Tomaz; e menos frequente o poeta Silvio R. Santos, trazendo invariavelmente uma novidade literária. Completavam o círculo Assis Vidal e o discófilo Nelsinho Lourenço, com seu inseparável rapé. Uma figura saudosa e sempre de bom ânimo era meu amigo Carlos Mandrinni que costumava adentrar o ambiente cantarolando, e com boa voz, alguma canção de Nelson Gonçalves, seu ídolo eterno. Esse costume inspirou o Toinho a criar o quadro “A música do dia”. Parece-me agora estar ouvindo a voz do velho Mandrinni, de longe e de braços abertos me cumprimentando, enfático: “Pedro Paulo Paulino, Poeta Popular!” E se orgulhava de ter engendrado esse pensamento: "Se não fosse a música, o mundo seria cheio de ruídos horrosos".
Bem, a mesa posta na calçada era servida, nem sempre a contento, pelo garçom Adriano. O local não tinha evidentemente aquele glamour dos cafés parisienses. Mas não há que se negar que aquele trecho de chão urbano respirava poesia e boa prosa, ao tempo em que seus ocupantes também se contentavam em admirar as beldades na passsarela da rua. Daquelas audiências alegres saíram muita história bem-humorada, muito folcore e muita rima, de ordinário escrita em guardanapo.
Até mesmo o Toinho, oriundo da roça e com pouca escolaridade, ilustrou-se ouvindo a conversa eclética daquela gente. E ao burburinho dos poetas, juntava-se o vozerio de outras pessoas, num entra-e-sai frenético, enquanto o Toinho, na estreita cozinha do bar, preparava o caldo à base de jerimum que era vendido na manhã seguinte.
Na calçada do bar do Toinho |
Eis em síntese o que era o Bar do Toinho. Fechou não pela inoperância e desorganização, porque assim resistiu cerca de quinze anos. Fato é que o prédio foi devolvido para outra finalidade. Sequer mesmo foi preciso pedir concordata. O Toinho, durante esse longo período de faina incessante, acumulou tão-somente a dura experiência de bar-man, mas também boas amizades e uma grossa pilha de “vales” dos seus fregueses inadimplentes. Se não ajuntou bens, também não acumulou maldade.
É que o Toinho, apesar da experiência, não atentou para um detalhe. É sabido de todos, desde os tempos do Quintino Cunha, que todo bar que acolhe poetas finda sempre assim: melancólico e quebrado. Au revoir, Toinho! (Crônica publicada no jornal Folha Regional, em fevereiro de 2008)
SONETO PARA UM FALSO BAR
Versos feitos para o extinto bar do Toim no mercado velho,
em Canindé, engolfado pela fúria da modernização...
em Canindé, engolfado pela fúria da modernização...
Silvio R. Santos
Havia no mercado velho um bar,
indeciso entre cana e vitamina,
seu cardápio imitava uma oficina:
balbúrdia, poucos bebes, sem manjar...
Os poetas ociosos tinham lar
na calçada, ocupando essa cantina
entre operários... noite, essa buzina
impedia o expediente de encerrar...
Em frente, a rua em passarela punha
ninfeta, camelô, ladrão, velhota;
e tira-gosto havia, às vezes, unha...
Misturou-se cerveja com compota...
Era um bar que em merenda se compunha
ou restaurante? Enfim no que se vota?..
Que saudosa memória...
ResponderExcluirMuitos folhetos que circularam nos últimos 15 anos foram feitos nas mesas do Bar do Toinho, a antiga lanchonete MARCOS & MARCOS, no Mercado Velho de Canindé. O espaço era frequentado pelos literatos locais... Pedro Paulo, habitué; Silvio Roberto Santos, Mário Lira, jornalista Alves Caprino, poeta Natan Marreiro, dentre outros.
ResponderExcluirResta ainda o bar do ALMIR & MAZÉ, mas depois que esse ótimo reduto da boemia cerrou suas portas, o Mercado nunca mais foi o mesmo.
bela memoria nao pode deixar em branco
ResponderExcluirSem dúvida,como você diz, poeta, a fauna humana que frequentava o bar do Toim é irrepetível. Poetas,magistrados, eletricistas, ninfetas, chatos de galocha, todos marcavam encontro inesperado nesse covil, em que não se sabia se era comércio de merendas ou de coisas mais voláteis. Quantos versos feitos na calçada enquando o lado mais belo da "fauna" transitava por perto, brindes hostis,foram substituídos por uma insípida loja de bolsas, bolsinhas e, calçados...
ResponderExcluirE dos bares da Rua Palha? nao tem cronica? bem que eu me lembro de certos nomes citados acima, frequentar com similar assiduidade aqueles barzinhos rsrsrsr
ResponderExcluirPensei que o poeta Silvio Roberto fosse dizer..."Um comércio de bolsas, bolsinhas e CORNETAS..." kkkkkkkk
ResponderExcluirBons tempos em que eu morava em Santa Quitéria e vinha visitar meus pais aqui em Canindé, onde invariavelmente costumava encontrar meu saudoso amigo Idelmar e também o poeta Mário Lira, onde nos finais de tarde no Bar do Toinho, tomávamos umas e outras relembrando tempos idos de nossa juventude, quando a felicidade era uma realidade presente, porém não imaginada.
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