terça-feira, 3 de outubro de 2017

CRÔNICA

DEPOIS DA FESTA

Pedro Paulo Paulino

Durante a alta estação da romaria em Canindé, há um clichê tão repetido, que é como se fosse um comando gravado no cérebro e acionado automaticamente. Trata-se do “depois da festa” – uma frase curta, mas de enorme efeito, que implicitamente e de caráter recíproco é acatada e compreendida por todos.
Aquele compromisso, aquele projeto, aquela incumbência antes impreterível, aquela promessa de algo, ficam agora reservados para... depois da festa. O passeio fora da cidade, a compra de um objeto, o filme inédito, o encontro rotineiro que põe em dia a fofoca da rua, tudo agora fica para... depois da festa.
Isto porque a festa de São Francisco absorve de corpo e alma a maioria dos habitantes da cidade, dedicados neste momento a ocupações extras, licenciados de seus afazeres costumeiros e voltados exclusivamente para os dez felizes dias de agitação. É aí que entram em campo, com todo o seu poder de convencimento, com todo o seu conteúdo profundo e significativo, essas três palavrinhas mágicas: “depois da festa”.
E não existe quem, sendo nativo, contraponha-se ao “depois da festa”, uma vez que todos compartilham essa espécie de senha temporária no convívio social. É um recurso indispensável na agenda coletiva. É quase um patrimônio linguístico da cidade. Por isso, a frase tem aquele peso de uma fórmula e reduz em si um amplo conceito psicológico, talvez. É traduzida instantaneamente no inconsciente de quem a ouve. “Depois da festa” encerra ideia de tolerância, transigência, complacência etc.

“Depois da festa, eu falo contigo”, por sua vez, é tão-somente um desdobramento suave da sentença por demais utilizado. Pode-se também, mesmo a distância, fazer aquele gesto positivo com o polegar, e dizer alto a um conhecido: “Depois da festa, viu?!”. Neste gesto e palavras aparentemente vagos impera um incrível consenso íntimo, um entendimento tácito organicamente captado pelo ouvido. Por convenção, até dívidas ficam proteladas para... depois da festa. Mesmo porque, a festa de São Francisco, apesar de seu valor espiritual, torna-se ainda, para muita gente, aquela chance periódica de engordar a burra ou, noutro dizer bem nosso, “limpar o cabelo”. Assim sendo, diletos credores, até... depois da festa.

Nenhum comentário:

Postar um comentário