domingo, 21 de agosto de 2016

CRÔNICA


O ENTERRO DE UMA TRADIÇÃO

Pedro Paulo Paulino

Há mais de cem anos que em Vila Campos, interior de Canindé, no mês de agosto realiza-se a festa de São Roque, padroeiro da povoação. Nesse período, o lugarejo engalana-se, feliz, acima de tudo, por acolher seus filhos que, por circunstâncias da vida, separam-se a maior parte do tempo. É o momento de alta estação na vida do lugar. Hora do reencontro fervoroso de familiares e de amigos. Hora de festejar tradições e honrar costumes, homenagear entes queridos e rememorar coisas que vão ficando na esteira do tempo. A maioria de nossos parentes mora em Fortaleza ou fora do estado. Mas não há distância nem dificuldade que os impeça de comparecer ao encerramento dos festejos.
A programação inclui novenário, em que os fiéis prestam contam de sua fé com o santo; missa festiva de encerramento, animado leilão e festa dançante à noite, já que ninguém é de ferro, nem mesmo São Roque. No leilão tem galinha caipira assada no forno, o capote, o carneiro, o boi e outras prendas doadas pelos fiéis e arrematadas em lances que se disputam calorosamente no compasso do fole da sanfona, tudo regado a uma boa cerveja. Até o sol, a poeira e o calor deste período do ano são bem-vindos. No fim das contas, a quermesse é de caráter beneficente e quem lucra é a igreja.
Pelo menos era assim, desde os primeiros anos do século passado até nossos dias. Este ano, contudo, a festa encerra-se em branca nuvem, melancolicamente. Em vez do animado leilão e da expectativa do baile à noite, após a missa festiva, na manhã deste sábado, os fiéis acompanharam em silêncio o enterro de uma tradição secular em Vila Campos. O sepultamento do viés folclórico, cultural e genuinamente nosso. Por determinação de autoridade religiosa, foi terminantemente proibida a realização de eventos recreativos paralelos ao rito católico. Nem leilão nem festa. Nem quermesse nem dança. Tudo santificado e puro como o Éden antes do pecado original.
Alheio à tradição secular de um povo, alguém achou-se no direito de manietar e engessar rudemente uma tradição congênita, um costume organicamente transmitido de geração a geração. Vila Campos, tão neutra e pacífica, de povo hospitaleiro e folgazão, tornou-se fatalmente vítima da fúria destruidora de costumes e culturas que começou na cidade de Canindé, onde é notório, várias tradições, materiais e imateriais, ligadas à grandiosa festa de São Francisco, foram nos últimos anos estupidamente dilapidadas, abolidas, por mãos arrogantes e insensíveis. Tomando medidas radicais e antipáticas como essa, desejará talvez algum desavisado religioso consertar o mundo. Convém lembrar, todavia, que o conserto do mundo, sob hipótese alguma, jamais começará por Vila Campos, onde a tradição é que é sagrada; destruí-la é que é profano. Repudiamos veementemente a ideia absurda e retrógrada de quem aboliu, este ano, o lado recreativo de nossa festa. Mais atual que o dono dessa ideia insolente estava o sábio grego Eratóstenes, embora há mais de dois mil anos, quando disse: “Uma vida sem diversão é como um caminho sem hospedaria”.

Um comentário:

  1. O leitor e colaborador deste blog, Dr. Maurício Moreira Cardoso, envia por e-mail o seguinte comentário.

    "Deve ser por atitudes como essa do sacerdote ditador que ninguém quer ir pro céu. Se no paraíso não é permitido expressar alegria, comemorar o começo e o fim de um saudável empreendimento, então mude de nome, e passe a se chamar Monotoniso ou Cemitério Celeste; que tal?!" (MMC)

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