terça-feira, 26 de janeiro de 2016

A MORTE DO PROFESSOR E
DO SOLDADO ANDRADE

Freitas de Assis*


Não se consegue fugir das peças que o tempo costuma nos pregar. Invariavelmente ele nos cerca e faz com que revivamos fatos que já estavam adormecidos ou mesmo guardados em algum baú empoeirado de nossa traiçoeira memória. Um destes fatos ocorreu em 1995, precisamente em 23 de janeiro, uma segunda feira em que o policiamento de Canindé era feito em um precário Gol Mil de duas portas, sendo necessário mencionar que uma única patrulha fazia o policiamento da cidade, formada por três policiais, sendo os demais homens de serviço distribuídos em policiamento a pé, na guarda do quartel e na cadeia pública.
Neste fatídico dia eu estava de serviço na guarda do quartel, o oficial de dia era o tenente Edvando, e o fiscal de policiamento era o sargento Néres, auxiliado pelos soldados Airton e Souto, se não falha a já gasta memória.  O bom de envelhecermos e lembrar fatos de mais de duas décadas é poder atestar as mudanças que ocorrem ao nosso redor e ver que em alguns casos estas mudanças representam uma evolução.
Naquela época eu mesmo era um fumante inveterado e discípulo fiel de Baco, assim como muitos de meus companheiros eram chegados a um copo cheio “y otras cositas mas”, onde atualmente vejo um nível de educação melhor dos policiais, outros interesses como concluir um curso superior e aquisição de bens duráveis; poucos que conheço fumam e os que tinham a minha idade hoje podiam ser considerados homens velhos e cansados com nenhum cuidado com a saúde ou sequer desenvolviam alguma atividade física, coisa que hoje faz parte de minha rotina, assim como também o álcool e o fumo já se distanciaram de mim há mais de dez anos; contudo, existe na corporação – é bom que se frise – pessoas escravas de vícios, já que a polícia é composta de uma amostra da sociedade a qual ela protege, e como tal, tem lá suas imperfeições. Hoje o policiamento em Canindé é feito por várias patrulhas; infelizmente na mesma proporção que aumentou o policiamento, a violencia também deu uma guinada.
Um desses meus antigos companheiros que gostava de beber em demasia e já havia se envolvido em desordens e punido por tal fato estava de licença médica e liga para o quartel relatando que estava bebendo com um homem armado que conhecera naquele dia, e que este homem atirava muito bem. A viatura da cidade estava atendendo uma ocorrência na localidade de Madeira Cortada e ao miliciano foi aconselhado que fosse para casa e aguardasse. Novamente ele liga para o quartel já quase meio-dia e eu atendo a ligação no 190. Ele relata o fato novamente usando de gírias dizendo que o “cara tinha um ferro massa” e atirava muito bem, podendo ser um pistoleiro, quando então passei a ligação para meu superior o tenente Edvando, o qual conversou alguns instantes com o policial Luís (este é o nome do nosso protagonista) e desligou o telefone.  Ato contínuo perguntou via rádio pela localização da patrulha do sargento Néres, e este informa que já estava retornando para a cidade e recebe a determinação de se dirigir para as imediações da Rua Raimundo Alcoforado, próximo da ponte sobre o rio Canindé. Infelizmente, não houve tempo hábil para se evitar uma tragédia.
O policial Luís que ligara para o quartel e bebia com um homem armado e exímio atirador segundo afirmara antes, em um momento de discussão e descontrole e por motivo fútil, conforme a denúncia do Ministério Público, toma a arma de seu eventual companheiro de bebedeira, persegue-o e lhe dá um tiro na boca. Ainda segundo a denúncia corroborada por testemunho de pessoas do povo, a vítima estava de joelhos. Vendo a barbárie que acaba de cometer, ele foge pela rua de arma em punho, é perseguido por populares que lhe tomam o revólver calibre 38 e começam a lhe espancar. Nesse meio tempo a viatura, que já tinha saído da localidade de Madeira Cortada e foi acionada para o local do crime, chega e consegue tirar o assassino das mãos insanas da turba que o espancava e poderia linchá-lo. Os policiais o prendem e ele é conduzido algemado para o quartel, enquanto a vítima, inerte ao solo e sem vida em meio a uma poça de sangue, é conduzida para o hospital e em seguida para a delegacia, onde ficaria exposta à curiosidade do povo, já que naquele tempo não havia IML em Canindé, e as vítimas de mortes violentas eram expostas na delegacia em cima de uma pedra de cimento. Quanto ao assassino, por ser militar, foi conduzido para o quartel.
De sua entrada na unidade militar, lembro-me dele ter chegado chorando, algemado e pedindo ajuda para mim e o carismático sobralense Gonçalves. Quando o comandante da unidade naquele dia, Major Matias, viu a situação, determina que o mesmo fosse conduzido imediatamente para a delegacia para ser autuado em flagrante por infração ao artigo 121. Este fato deu-se por volta de 13 horas. Mais tarde por volta de 15 horas, a patrulha saiu com o mesmo sendo escoltado para o presídio militar localizado no 5º BPM em Fortaleza. Parecia que o restante dia transcorreria mais calmo depois desta ocorrência nefasta. Contudo, já por volta de 17 horas, uma chamada no Copom deixa a situação ainda pior. Segundo informações, um homem havia sido esfaqueado no Alto do Moinho por um elemento conhecido por Valdão.
Relatei anteriormente que a viatura de serviço fora conduzir o policial Luís, homicida confesso e preso em flagrante para o cárcere, porém outros policiais foram alocados noutro veículo para continuar o policiamento ostensivo, sendo que esta patrulha informou que já estava no local do segundo crime. O major Matias soube que um policial que estava de férias (Ivan Luís Andrade, conhecido apenas por Andrade, de compleição física atlética, alto, loiro e de olhos claros, alguns o chamavam de alemão e tinha índole tranquila) estivera mais cedo bebendo com o soldado Luís que havia sido preso na cena do crime, razão pela qual o oficial determinou que a patrulha localizasse o soldado Andrade, pois segundo o major, ele estaria envolvido em dois crimes neste dia. E de fato estava envolvido no segundo crime do dia, mas como vítima, pois a composição de serviço informou ao major que ele era a pessoa esfaqueada e estava morto. Após esta informação ser ventilada entre a tropa, diversos policias de folga compareceram ao quartel num ato de solidariedade e corporativismo, inclusive policiais que estavam entrando na polícia naquele instante e estavam ainda em formação, e saíram em diligências para prender o homicida do segundo crime num mesmo dia na capital da fé. Diligências estas que entraram noite adentro, contudo, infrutíferas, sendo que Valdão tombou morto em uma ação policial meses depois na localidade de Renguengue, sob o comando do tenente coronel Roberto Nascimento, e com a participação do quase lendário Cabo Gonzaga, homem de índole forte e temperamento intempestivo, falecido há alguns anos vítima de problemas no fígado.
Quanto a mim, permaneci em meu posto na guarda do quartel, onde vi chegar aos prantos e aflita a viúva do policial Andrade, uma senhora de nome Marlene, e ela recebe a confirmação do comandante do batalhão sobre o destino fatal de seu marido. Quanto à vítima do primeiro homicídio, não era pistoleiro coisa nenhuma, como informava antes o soldado Luís. Era professor de conceituado colégio na capital cearense e atirador esportivo, razão de sua destreza com arma de fogo e o porquê de portá-la. Este foi um dia de ocorrências muito conturbadas, deixaram sequelas em parentes de vítimas, na sociedade canindeense, luto e lembranças amargas na corporação alencarina e na vida de todos que foram envolvidos nas duas ocorrências, que de uma forma ou de outra, se interligam. O tempo passa e estas informações viraram apenas sombras em minha memória, quando em um inusitado e simples atendimento de ocorrência tudo é revivido.
O ano de 2015 se despediu de nós sem deixar muitas saudades. Sem mencionar a crise econômica, causada por desmandos do governo, pela corrupção e outro conjunto de fatores que não vem ao caso citar, como a seca histórica, tal como a do terrível ano de 1915, relatada na obra “O Quinze” da imortal Rachel de Queiroz, o ano que já morreu, deixa pelo menos a grata lembrança de minha ascensão profissional à graduação de 1º sargento após uma longa espera de nove anos e já tendo cumprido o interstício mínimo de dois anos.
Esta formatura, que contou com a presença de várias autoridades do estado e do município, e também de nossos parentes estimados e amigos diletos, ficou marcada pelo número enorme de policiais e bombeiros que foram promovidos, fato nunca antes registrado na história do Ceará. Em dezembro, merecidas férias após um ano de trabalho árduo a bordo de velhas viaturas. Em janeiro reinicio minhas atividades com energia renovada, e com esperanças de melhoria em todos os aspectos, já que previsões de um inverno ruim pela Funceme não devem ser confirmadas, pois nos primórdios de janeiro, os primeiros “borrifos da chuva fecunda” deixam florescer novas esperanças em todos nós.
Sábado 23 de janeiro de noite chuvosa em Canindé, às 18 horas entro de serviço na viatura 1214 com os soldados Paulino e Jairton. A primeira missão no turno é a condução de uma mulher para o hospital vítima de uma queda, já que ela afirma que não tinha ambulância disponível e nem dispunha de transporte próprio. No local, a solicitante informa não ser mais necessário, pois estava melhor e foi somente alarde de suas filhas; apenas uma pancada na cabeça devido a um escorrego. Mas mesmo assim estava agradecida.

Depois de alguns instantes os companheiros me perguntam quem era a pessoa, informei-lhes que era a Marlene, viúva do soldado Andrade, morto em 1995. Contei-lhes a história, voltei e fui tirar a dúvida com  Marlene acerca da data precisa. Ela disse que jamais poderia esquecer tal fato, e sua filha, com uma criança no colo, de cabelos loiros como o do avô que jamais conhecerá, me informa que precisamente naquela data fazia aniversário de 21 anos da morte do pai. Desejei boa noite e segui meu destino, relembrando a história para os companheiros e contendo uma lágrima que insistia em aflorar com as recordações de dois homicídios ocorridos anos atrás.

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*Sargento da Polícia Militar.

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