quarta-feira, 20 de agosto de 2014

BREVE HISTÓRIA DE VIOLÊNCIA FAMILIAR

Freitas de Assis*

No trabalho de policiamento ostensivo e atendimento de ocorrências, das mais comuns é a de violência doméstica. Raro é o fato deste tipo de violência ser cometida contra homens. Geralmente é o contrário: a mulher, considerada o sexo frágil, é quem leva a pior na história, embora ocorram vez por outra situações, digamos, vexatórias para o homem, quando algumas mulheres literalmente partem para cima e resolvem as desavenças de casal no braço; e assim como a mulher, quando o homem leva a pior, nem sempre registra a ocorrência, talvez por se sentir envergonhado ou achar que as tenazes da justiça sejam incapazes de atingir a mulher neste tipo de situação, e que a lei Maria da Penha apenas protege as mulheres, quando na realidade, hoje, ela serve para inúmeras situações de violência doméstica, independente do grau de parentesco, apenas que haja vínculo afetivo ou consanguíneo e uma convivência dentro de um lar.
Fato semelhante se passou outro dia, quando um jovem trabalhador me procurou com algumas cicatrizes pelo rosto, braço e pescoço, pequenos arranhões, e em tom de brincadeira indaguei se ele havia brigado com um gato, e com um sorriso franco apenas me disse que a companheira tivera um ataque de fúria e o agredira, querendo apenas retirar o que lhe pertencia de dentro do imóvel onde viviam em harmonia há quase dois anos. Informei-lhe então sobre pequenas formalidades a ser cumpridas, como por exemplo, o simples fato de registrar um boletim de ocorrência e a possibilidade de processar a ex-companheira, para resguardar os policiais que atenderiam à ocorrência. Diante da recusa em não registrar a ocorrência e nem processar sua antiga companheira baseada na lei Maria da Penha, informei-lhe que não poderia ajudá-lo, já que sem vítima não havia crime, assim como não existia situação de flagrante. Passado algum tempo, já havia esquecido este fato, quando sou abordado na rua pela “vítima”, informando-me que sua antiga consorte tinha “limpado” o imóvel em que combateram, deixando apenas a cama e um fogão, mas que estava feliz e que a vida devia seguir seu fluxo e dela não guardava mágoa.
Esta história não tão incomum lembrou-me da jovem Rosevania, que conheci em Santa Quitéria em 1993. Sobrinha de minha esposa, órfã aos dois anos quando a mãe desta falecera de complicações no parto. Ainda adolescente, conhece seu algoz e futuro marido, que a engravidou de sua primeira filha aos dezoito anos de idade. Advaldo era seu nome. Homem trabalhador, tinha lá suas virtudes, entretanto era chegado a um copo, e vez por outra ultrapassava os limites e seu ciúme doentio se manifestava em hematomas pelo corpo de Rosevania. De princípio ela sofria calada, porém abriu o verbo para a família, quando minha esposa, à época grávida de nossa primeira filha e conosco morando em Canindé, foi até Santa Quitéria visitar parentes e soube do fato. Tomando as dores por ela, foi à delegacia e conseguiu que o mesmo fosse detido e processado. Nesta época, a Lei Maria da Penha era um sonho distante e foi feito apenas um T.C.O. Poucos anos depois Rosevania tem mais um filho, desta vez um menino, formando um casal, entretanto as desavenças continuam e vez por outra ela aparecia com uma ou outra mancha, valendo-se de eventuais desculpas para os machucados. Até que num belo dia ela surge em Hidrolândia, onde eu com a minha família havia me estabelecido desde 1998, e nos disse que se separara do companheiro devido às constantes agressões. Eram meados dos anos 2000. Um novo século surgia com esperanças de mudança, renovação e progresso para todos. Inclusive para Rosevania e seus filhos. Planos foram feitos. Ele lhe pagaria uma pensão. A família de Rosevania era grande. Havia muitos primos e primas que foram criados com ela próximo dos avós, quase como irmãos. Certamente lhe ajudariam e se comprometeram com isto.
Do outro lado da balança, a família de Advaldo se mobiliza. Ele estava disposto a mudar. Arrependido, incumbira suas irmãs a convencer Rosevania em reatar o relacionamento, mas sua família usava argumentos os quais ela já sabia. Que ele só falava da boca para fora e que certamente reincidiria em atos de covarde violência, porém a dependência financeira e amor dos filhos ao pai certamente falaram mais alto e Rosevania volta para os braços de seu companheiro.
Algum tempo depois, não me recordo quando, a mesma cena se repete. Lá vem pela estrada Rosevania com seus poucos pertences e um casal de filhos em busca de segurança e paz para continuar sua vida. O mesmo enredo. Ele lhe batera e quando foi trabalhar, ela fugira. E mais uma vez sua família ajudando e a de Advaldo convencendo-a a reatar o conturbado romance. Até mesmo um vereador de Santa Quitéria veio intermediar a conversa e, quando lhe indaguei se a integridade física dela seria garantida por ele, me disse que não poderia garanti-la, mas ela era livre para escolher. Diante da dúvida atroz que pairava sobre Rosevania, Advaldo ajoelhou-se aos seus pés e jurou por tudo quanto era mais sagrado, num ato de flagrante sacrilégio como se veria mais adiante, que jamais tocaria em um fio de cabelo sequer de sua amada. A razão a mandava não aceitar tais juras e tocar sua vida para frente, porém, como disse anteriormente, a dependência econômica e o amor dos filhos ao pai falaram mais alto.
Em 2003 mudei-me para Santa Quitéria. Morava no bairro Piracicaba com minha família, próximo do bairro Menezes Pimentel, onde morava Rosevania, agora casada legalmente e com mais uma filha. De 2003 até 2005, pelo menos dois ou três episódios de desentendimento do casal protagonista de nossa narrativa já haviam ocorrido com o mesmo desfecho.
E como todo copo tem sua medida, o de Rosevania enfim transbordou em meados de 2005. Sem alarde nem escândalo, ela foi à delegacia, registrou o B.O, foi ao fórum e marcou audiência, munida também de exame de corpo de delito, e conseguiu de início, separação de corpos e arbitramento de pensão, além de morar na casa que construíram com os filhos, ficando a divisão dos poucos bens para depois. De todas as formas ele tentou em vão reatar o casamento. Rosevania estava irredutível. Criara coragem, endurecera e não mais cederia às chantagens e promessas de Advaldo e suas irmãs. Não mais surgiria de olho roxo e cabeça baixa nas ruas de Santa Quitéria. Mais de dez anos se passaram desde que a conheci. Uma nova mulher surgia. De cabeça erguida e com vontade de trabalhar, criar seus filhos e ser independente, porém andava com medo. Advaldo desejava a casa. Queria vendê-la e as imposições da justiça o impediam. Ameaçou-a. Acusara-a de ter um caso com um companheiro seu de trabalho.
Infelizmente, em janeiro de 2006, o desfecho da história. Rosevania foi covardemente assassinada com três golpes de faca à altura do pescoço pelo seu ex-marido, que um dia jurou amor eterno aos pés do altar. Foi preso e condenado a doze anos de reclusão por nossas leis. Em 2012, eu estava em Santa Quitéria com minha filha Amanda esperando um ônibus para Canindé. Era um domingo. Quando embarco no ônibus e me dirijo ao assento, cruzo com o assassino de Rosevania confortavelmente sentado em completa liberdade, passados pouco mais de seis anos do crime e com um histórico de violência que não caberia nesta coluna.

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Cabo PM, colaborador do blog*


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