quarta-feira, 16 de abril de 2014

O mais notável poeta e escritor vivo do Brasil, Glauco Mattoso, em crônica recente menciona Canindé e um símbolo da romaria. 

A QUINCTA DIMENSÃO
E O SEXTO SENTIDO

Por Glauco Mattoso


Quem não é cego de nascença e perdeu a visão na meia edade, como eu, tem registros tridimensionaes bem nitidos na memoria, alem da obvia noção de perspectiva que deforma os objectos dependendo do angulo de observação, como naquella famosa tela de Dali focando um Christo crucificado visto de cyma para baixo, ou naquellas embalagens que replicam uma figura dentro de si mesma, successivamente menor, até que desappareça do olho nu, mas presuppondo infinita visualização com algum effeito de lente de augmento, como os tradicionaes rotulos do fermento Royal e do óleo Maria. Si não me enganno, a banda Pink Floyd usou esse recurso na cappa do album UMMAGUMMA, alguem me confirme ou desminta. Podolatra que sou, minha casa sempre guardou innumeros itens decorativos representando pés e calçados de todo typo, mas, depois de cego, só posso continuar usufruindo das peças tridimensionaes. Dos quadros e posters ficou apenas a lembrança: um chartaz do sorvete Gelato com a photo dum garoto prestes a lamber um picolé no formato dum pé descalço, o "Perepepé"; a impressão plantar em tamanho natural do pé do Jackie Chan; dois chartões postaes com a photo do pé da estatua de Constantino, a mim enviados em differentes datas por João Silverio Trevisan e por Néstor Perlongher, quando passaram por Roma; dois quadros com xerocopias dos pés de Hudinilson Junior, feitas pelo proprio artista plastico na phase em que documentou seu corpo nu e presenteou os amigos com imagens de cada zona anatomica, e assim por deante. A proposito, aproveito para render meu tributo à rte postal, mural e corporal, que eu chamaria de "symplastica", desse legitimo expoente da  vanguardista intervenção urbana, recentemente fallecido, e me disponho a doar os dois quadros xerographicos a quem esteja na curadoria da obra do Hudinilson. Entretanto, ainda posso desfructar dos objectos palpaveis espalhados pelo mobiliario, taes como bibelôs, estatuetas, cinzeiros, miniaturas, brinquedos, penduricalhos e ex-votos, tudo reproduzindo sapatos, botas, cothurnos, tennis ou pés descalços. Destes, meus xodós são presentes que recebi de Canindé e outros centros de romaria, para onde os devotos levam, em pagamento de promessas, esculpturas de madeira representando partes do corpo "curadas" por obra e graça divinas. Algumas dessas esculpturas são verdadeiros exemplos de arte popular anonyma, detalhando tornozelos, curvas plantares, tendões, artelhos, unhas, inclusive o dedão menor nos casos de pé do typo grego, formato que fascina meu fetichismo. Vez por outra algum amigo, como o poeta cearense Sylvio Roberto Sanctos, se lembra de que continuo me alegrando ao ganhar taes mimos e, deliciosamente surpreso, abro a caixa contendo mais um ex-voto para a collecção.  Por fallar em dimensões e em memoria visual, sei onde está cada quadro e qual imagem está emmoldurada nelle, como sei onde está cada ex-voto e qual typo de pé está esculpido nelle. Locomover-me pela casa, à luz do dia ou na escuridão da noite, é-me indifferente do poncto de vista das referencias espaciaes e concretas, ja que desvio dos obstaculos por força do habito e me desloco com relativa desenvoltura. O que me impressiona é uma especie de radar abstracto, à guisa de percepção extrasensorial, que me faz evitar obstaculos imprevistos, não só dentro de casa, e me poupa por um triz de algum accidente. Claro que, de vez em quando, fico desattento, batto a testa ou dou cannelladas, solto um palavrão e provoco gostosas gargalhadas naquelles leitores que curtem meu masochismo. Mas o presentimento da collisão não é o unico effeito dessa percepção extrasensorial: consigo detectar até as más vibrações e as energias negativas emittidas pelas pessoas que me rodeiam, o que já constitue assumpto para outra chronica. Por emquanto, limito-me a illustrar este aponctamento com dois sonetos pertinentes e a reiterar a intenção de doar os quadros do Hudinilson.
Até a proxima!

SONETO DO UNIVERSO DENTRO DO OLHO [1499]

Algumas embalagens são lembrança
curiosa: oleo Maria, a do fermento...
Na latta, a propria latta ninguem cansa
de ver reproduzida um só momento...

É como na TV, quando se alcança
que a imagem se reflicta: o pensamento
reduz-se ao infinito, a mente avança
até que o menor poncto ganhe augmento...

Si dentro dum espelho se replica
o mesmo espelho, indago: onde é que fica
o fim? Só no limite da visão?

E quando o cara é cego? Sei que a latta,
no fundo, bem no fundo, só retracta
a minha propria cara, olhando em vão...


Attenção! Quaesquer textos assignados por Glauco Mattoso estarão em desaccordo com a orthographia official, pois o auctor adoptou o systema etymologico vigente desde a epocha classica até a decada de 1940.

.......................
Com a colaboração de Sylvio R. Sanctos.

3 comentários:

  1. Li este texto no jornal de mão em mão e algumas pessoas me perguntavam sobre a ortografia e se o texto era do Sylvio; então explicava o porquê da forma de escrita, parecendo que alguns que leram o texto não viram a nota de rodapé e também não sabiam da amizade entre os dois poetas. Conheço o trabalho do Glauco desde os tempos da Banana Purgativa, publicada na revista Chiclete com Banana.; vi outros trabalhos dele em outras publicações inclusive na revista Caros Amigos. Um grande poeta e escritor.
    Freitas.

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    1. Exato, Freitas. O Glauco também teve a fase visual, um grande e múltiplo artista. srs

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  2. Grato pelo comentário, caro Freitas, leitor ideal.

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