sexta-feira, 8 de novembro de 2013

NA CALÇADA DO ZÉ RAQUEL

Freitas de Assis*

O escaldante sol em fins de outubro de um final de tarde é o prelúdio de esperanças para um bom inverno em 2014. Nestes dias, ao amanhecer, torres de nuvens ao longe e um clima mais ameno e por vezes leve garoa exponenciam estas esperanças para nós nordestinos e canindeenses. Neste fim de tarde, de folga das obrigações para com o Estado, estou ocupado com o pequeno comércio que minha esposa e eu mantemos no centro de Canindé, cidade turística com ruas esburacadas e tosca pavimentação que fazem a alegria dos mecânicos que trabalham com suspensão de veículos, assim como vendedores de outras praças e turistas que fazem comparação da nossa com outras cidades classificando-a entre as últimas quanto ao quesito infraestrutura. Às vezes saio da loja para resolver algum assunto e aporto no comércio do amigo Zé Raquel, onde sempre surgem histórias de pescadores, além de bravatas dos tempos de mocidade de respeitáveis cidadãos, alguns já sexagenários, os quais já viram muito coisa por aí, como por exemplo, diversas figuras em campanha política pelos palanques da vida, fazendo mirabolantes promessas dignas das histórias de pescadores e que se fossem postas em prática já teriam feito de nossa terra verdadeiro paraíso terrestre.
No instante em que chego ao Zé Raquel, ocorre acalorada discussão entre alguns destes cidadãos, onde o tema em foco é a segurança pública. Uns falam que o problema é a falta de efetivo policial, outro que é a lei muito branda, que só protege quem a ultraja, e um cidadão que por ventura deixe de pagar seus impostos corre o risco de ser preso, assim como quem deixa de pagar pensão alimentícia e vai parar nas tenazes da justiça.
Neste ponto todos concordam que um dos únicos motivos para prisão no Brasil é a inadimplência de pensão. O cidadão que falou que a lei é branda aponta improváveis soluções para o problema, inclusive a pena de morte. Argumento com o mesmo que num país de injustiças tão gritantes como o nosso, certamente inocentes seriam fuzilados pela benevolente mão do Estado, como ocorre nos Estados Unidos, onde as leis são mais sérias e rígidas que as nossas, pelo menos é o que a mídia deixa transparecer, e ainda assim ocorrem erros no sistema judiciário. Mas ele, quase irredutível, ainda fala que a polícia militar perdeu, nas suas palavras, a moral que tinha em tempos de outrora, referindo-se talvez à época da ditadura, e que no boné dos policiais a sigla PM, que significa Polícia Militar, antes era “PÊIA MUITA” e ao contrário “MUITA PÊIA”, mas que hoje PM, ao contrário, quer dizer Ministério Público, enfatizando sarcasticamente que o longo braço da lei alcança muito mais e com maior rapidez seus agentes e representantes do que de fato os criminosos que a transgredem.
Com minha chegada, e o assunto em questão ser parte de meu cotidiano profissional, procuro mudar o tom da conversa e aos poucos esta evolui para “causos” e piadas impublicáveis nesta coluna, mas que arrancaram gargalhadas dos presentes, e todos democraticamente deram sua contribuição nas anedotas.
Com a aproximação do período noturno e fim do horário de expediente, vejo aproximar-se minha primogênita e minha esposa, e percebo que já é hora de ir embora e relaxar um pouco. Ao chegar, aproveito o fim do entardecer e sento na calçada um pouco com minha esposa para conversar e observo as pessoas que saem de afazeres diversos regressarem para o recesso de seus lares. Alguns a pé, outros motorizados, em grupo ou sozinhos, todos buscam abrigo e descano de sua jornada. Entre os muitos veículos que passam, vejo uma viatura policial, o FTA da 1ª CIA do 4º BPM, passar em direção à delegacia ou cadeia pública com um homem algemado na carroceria da viatura. Certamente algum detento que volta para seu lar temporário após uma audiência. Esta cena não incomum em nosso município recorda-me que há poucos dias houve uma rebelião de presos na cadeia local, onde os detentos reivindicavam melhorias nas condições insalubres de higiene e acomodação, além de melhorias na alimentação e assistência jurídica. Com a chegada do GATE do Batalhão de Choque, empregando armas não letais, a situação foi contornada. Aqui em Canindé, fora as celas do semiaberto e uma para mulheres, são quatro celas para no máximo oito homens cada uma, e existiram situações no passado, não sei hoje, de haver até 18 homens em uma dessas celas de 16 metros quadrados aproximadamente. Imagine você em um quarto com um banheiro e mais 17 pessoas convivendo. Talvez resida aí o motivo para a violência crescente no Brasil: instituições que deveriam ressocializar e preparar infratores para o retorno ao convívio em sociedade apenas pioram a situação e os deixam mais revoltados, explicando também o porquê da maioria dos criminosos reincidirem em ações delituosas. Na realidade, em alguns lugares, são tratados pior do que animais. E se você trata bem um animal, este lhe devolve carinho reciprocamente, do contrário, ele fica indômito ou amedrontado.
Já que o assunto veio à tona, ainda em outubro um homicídio no bairro Palestina mostrou a fragilidade de nossas leis. Um homem, indiciado por dois homicídios, tráfico de entorpecentes e acusado de praticar assaltos, foi morto por desafetos em plena tarde com vários disparos de arma de fogo; contudo o portador de extensa ficha criminal estava em liberdade convivendo legalmente no seio da sociedade aguardando ser julgado, e quando o fosse, suas penas seriam fictícias, já que mesmo condenado a uma pena de vinte anos, por exemplo, dificilmente passaria metade desse tempo em clausura. A situação de prender criminosos reincidentes faz muitos policiais dizerem que o trabalho deles é o de enxugar gelo. Ou seja, você prende hoje e daqui a uns meses o prende de novo.
Anoitece e o noticiário mais cedo por conta do horário de verão não mostra muitas novidades: há anos luz de distância, um planeta recém-descoberto, batizado em homenagem a Johannes Kepler (astrônomo), tem tamanho e densidade semelhantes ao nosso, porém muito quente; no Vaticano, um menino rouba a cena perante o carismático Jorge Bergoglio, nas crônicas policiais vândalos mais uma vez provocam destruição em São Paulo durante manifestação. Já em Sergipe, nas duas únicas unidades sócio-educativas do Estado, condições insalubres e a precariedade do tratamento dispensado aos menores infratores não mostram um futuro muito promissor para jovens que se aventuram nos descaminhos do crime. E nas notícias de economia, um estudo mostra o crescimento da classe média nas favelas do Brasil, mas que ainda não se sentem incluídos nesta por conta da precariedade dos serviços oferecidos. Mostrou, porém, um morador carioca satisfeito com o lugar onde mora, que sua renda aumentou e que se sente mais seguro com a instalação de uma UPP (Unidade de Polícia Pacificadora), mas que além de segurança, gostaria de ver seu filho estudando em uma escola melhor no bairro, ter uma área de lazer, um lugar com melhor estrutura de transporte e de saúde, e talvez ele ainda gostasse de ver o endurecimento das leis em relação aos criminosos devido a sensação de impunidade.

Na realidade, o que todos nós esperamos para um futuro breve é o combate à violência em seu estado primordial. Antes que um marginal se forme é preciso investir em políticas públicas como moradia, saneamento básico, educação e saúde, além da geração de emprego e renda para que o crime não se instale em comunidades carentes, além de rever a legislação vigente que deixa tão forte a tal da sensação de impunidade e insegurança. E apenas uma questão fica no ar: quem é o maior criminoso, o morador de uma comunidade carente, viciado em drogas de arma em punho ou o político ou gestor público que prevarica e desvia recursos públicos e contribui para a formação do marginal?

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*Cabo PM, colaborador do blog

Um comentário:

  1. Excelente pensamento nobre Freitas, define o quanto vc é inteligente e adepto de uma criticidade positiva. Sempre leio suas matérias, e admiro muito o seu talento. Acho que o maior marginal é aquele que detém o poder de pelo menos propor mudanças para que a vida das pessoas seja mais digna, escolas, emprego, condições de moradia, enfim, o que manda a CF de 1988. Os marginais das periferias são frutos de um sistema excludente e aproveitador dessa situação. Uma pena.

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