O QUASE CACIQUE CABEÇA PELADA
Augusto Cesar Magalhães Pinto
Uma das
lembranças mais antigas que guardo da infância foi o período em que estudei no
velho Grupo Escolar Monsenhor Tabosa. Grande parte das amizades tecidas naquela
época ainda hoje conservo, afora aqueles com quem perdi completamente o contado
e outros que prematuramente partiram no bonde da eternidade. Estávamos no auge
do governo militar e o civismo estava na ordem do dia nas escolas públicas. Diariamente
cantávamos o Hino Nacional antes de ingressarmos nas salas de aula, e o Hino da
Bandeira, após o único recreio. Tudo isso sob o olhar moralizador da austera D.
Leda Pessoa, nossa diretora, a quem tratávamos com o mais profundo respeito. As
datas cívicas eram fervorosamente comemoradas, bem como Dia do Índio, Dia do Ancião,
entre outras.
Lembro
que sempre no Dia do Índio, nós apresentávamos trabalhos em equipe com
cartazes, réplicas de instrumentos indígenas e até maquetes de aldeias, de
gosto duvidoso, compatível com nossa pouca idade. A figura do índio em nossa
mente era mera ficção de um passado distante, sepultado pelo tempo.
Abriremos
um parêntese para falar um pouco da história do nosso aborígene que na época
desconhecíamos por completo. Quando o português aqui chegou, deparou com a
nossa primeira riqueza, o pau-brasil, e, através de uma amizade interesseira
com os indígenas, explorou em demasia sua mão-de-obra, utilizando sua robustez
para extração da madeira e para o transporte até os porões dos navios. Era uma
atividade extrativista que aniquilava a terra e avançava para outras áreas.
Quando o eixo econômico mudou para cana-de-açúcar tentou-se a escravização do
mesmo índio que tanto lhe fora útil, mas este não se adaptou ao sistema,
preferindo muitas vezes a própria morte.
Evidentemente
que o colonizador e o aborígene tinham visões diferentes da terra: o primeiro a
tinha como meio de produção e o segundo, como um espaço de liberdade, fonte de
alimentação e simbioticamente ligada à sua identidade cultural. Assim, o índio
foi compelido a se afastar do litoral e habitar os sertões. Durante quase dois
séculos, o homem branco praticamente limitou-se à exploração da faixa
litorânea. Entretanto, à medida que o rebanho bovino foi se reproduzindo, houve
a impossibilidade de se manter o gado junto com a cana pelo óbvio motivo do gado
alimentar-se dela. Como o que interessava ao governo português era a produção
do açúcar por ser infinitamente mais rentável, foi lançado um decreto régio
proibindo a criação de gado a menos de 10 léguas do litoral. O homem branco
iniciou maciçamente a introdução de bovinos sertões adentro e o índio, que já
tinha sido expulso do litoral, reagiu bravamente numa resistência heróica,
timidamente valorada na história oficial, que ficou conhecida como Confederação
dos Bárbaros, que, de princípio vitoriosa, quase aniquilou os fundamentos da
civilização lusitana.
Posteriormente
vieram os bandeirantes para combater os aborígenes e instalou-se uma autêntica
carnificina. A igreja católica que se fez presente desde o que chamamos de “Descobrimento
do Brasil”, como aliada da ideologia do domínio, sob a égide da Contrarreforma,
interviu no processo com o aldeamento das lideranças indígenas, catequisando os
índios, promovendo o etnocídio (destruição da cultura), que ainda hoje é muito
criticado, entretanto, reconheça-se, foi a única opção em favor da vida dos
povos indígenas: ou destruía a cultura, amoldando-os e subjugando-os ao
elemento dominador, ou predominaria o genocídio, a barbárie.
Mas,
voltando à minha infância, falava-se naquela época, timidamente, sobre a
pequena população dos remanescentes indígenas, os “Tapebas”, na região de
Caucaia, mesmo assim, em avançado estágio de aculturação.
Com o
advento da constituição de 1988, o tema ressurgiu fortemente, muito embora com
a crítica nos meios mais intelectualizados, que tal motivação não passa de um
disfarce na luta da terra, havendo a corrente que defenda a situação como uma
grande conquista dos povos indígenas antes marginalizados.
A
professora Isabelle Braz Peixoto, em sua tese publicada “Vila dos Índios do
Ceará Grande”, diz na introdução, cujo trecho se acha reproduzido na contracapa
como se segue: “A afirmação de que não existem mais índios no Nordeste é muito
frequente, mesmo em ambiente acadêmico. Muitos se dizem indignados frente ao
que chamam de ‘encenação’, os atos públicos nos quais os índios contemporâneos
buscam interagir e conquistar adesões a sua causa, via de regra trajando uma
indumentária que remete ao índio pré-colonial, adequando-se a uma imagem de
índio que estamos acostumados a cultivar, aprendida nos primeiros anos da vida
escolar”. Em complemento, eu diria que é o mesmo modelo de índio que eu tinha
em mente nos meus tempos de Monsenhor Tabosa.
O fato
é que hoje já se reconhece a presença de remanescentes indígenas nesta região,
na Aratuba e em Canindé, na localidade de Gameleira. O ex-prefeito de
Canindé, hoje falecido, Walter Cruz Uchoa, era proprietário de um sítio na
Serra de Aratuba, denominado “Gameleira”, tanto a localização como o nome do
imóvel, remetem, coincidentemente, a lembrança das localidades das tribos ora
reconhecidas, talvez seja esse o motivo do episódio jocoso que ali se deu há
alguns anos.
No
sítio Gameleira morava e ainda mora o Anildo com sua esposa D. Maria, hoje
falecida, e uma escadinha de seis filhos menores, todos do sexo masculino.
Trata-se de um lugar muito sossegado que naquele tempo só se via carro por ali
quando o Seu Walter ia uma vez por ano para a moagem da cana e fabrico de
rapadura, por sinal muito boa e de sabor diferenciado.
O certo
é que um dia chegou ali de uma vez dois carros tipo Toyota, cabine dupla e
carroceria, com grandes logotipos, não se sabe se de algum órgão governamental,
ou de alguma ONG, o Anildo nunca soube dizer por não saber ler. O certo é que
eles desceram simultaneamente, seis homens e duas mulheres, havendo um que
parecia ser o líder que cumprimentou o Anildo a distância e indagou de sopetão:
- Cadê
os índios daqui?
O
Anildo é um mulato escuro, baixo e forte, de fala mansa e arrastada e de gestos
lentos. Calmamente levantou-se do tamborete e foi ao encontro do grupo,
fitou-os calado por curto espaço de tempo e finalmente disse:
- Aqui
não tem índio não, eu nunca vi um índio na minha vida.
- Como?
Aqui não é a Gameleira?
- Aqui
é a Gameleira do Seu Walter Cruz, mas índio aqui não tem, não.
Houve a
decepção de parte do grupo, mas havia os mais bonachões que foram logo dizendo
que era melhor passar o dia por ali, pois já tinham rodado demais em estrada
ruim. Ato contínuo, disseram que traziam todos os mantimentos necessários para
uma boa refeição e perguntou ao Anildo se havia alguém que pudesse preparar a
comida. O Anildo chamou a sua esposa e ela de bom grado concordou, eles então
trouxeram dois fardos de alimentos e foi dito por um deles que a comida era
para todos, inclusive os de casa.
O
Anildo mandou fazer logo um café e todos ficaram a conversar animadamente no
alpendre, eles ainda perguntaram se havia uma outra “Gameleira” na região, mas
ele disse desconhecer. Depois do farto almoço a conversa fluiu melhor e um
deles disse para o Anildo que se ele declarasse descendente de índio seria bom
pra ele e para família, eles teriam vários benefícios do governo tais como,
cesta básica, escolas, assistência médica e ele, que é muito mercenário,
interessou-se bastante pelo assunto e aderiu de imediato. Eles falaram que
depois viriam outras pessoas (presumivelmente antropólogos) e que ele desse
informações vagas dizendo ter ouvido da mãe, quando criança que seus bisavôs
eram índios, pode até dizer que não sabe se é verdade, pra fingir desinteresse.
Um
deles questionou que o Anildo era muito preto pra ser índio, ocasião que outro
orientou de pronto que dissesse que o bisavô era negro e a bisavô índia. Como a
mulher do Anildo era branca os filhos já tinham biótipo mais acaboclado. Depois
de muita conversa e orientações, ficou tudo mais ou menos acertado: o Anildo
seria o cacique e posteriormente, depois da visita da outra equipe, é que
ele arregimentaria o resto da tribo.
Eles já
ensaiavam a retirada quando um pequeno enxame de abelhas invadiu o alpendre,
para o susto de alguns e desespero das mulheres que ficaram apavoradas. De
imediato, o Anildo tirou o chapéu e partiu para o confronto com as abelhas.
Ele, como de costume passara o dia inteiro de chapéu e somente naquele momento
é que os visitantes perceberam que ele só tinha cabelo do chapéu pra baixo.
Eles se
entreolharam, o líder se despediu de todos da família, no que foi acompanhado
pelos demais, agradeceram a cordialidade e deixaram uma boa sobra e alimentos e
adentraram silenciosamente nos carros. O Anildo se aproximou do veículo e
indagou ao seu orientador:
- Doutor,
e quando é que esse outro povo vem?
- Seu
Anildo, eu acho que eles não vêm mais não. Índio preto até que vai, mas
careca...
Ele
ficou desolado, e viu seu sonho de uma vida melhor desaparecer do mesmo modo
que desapareceram os veículos que ele divisou o sumiço na primeira curva de
saída do sítio. Assim, melancolicamente, o Ceará perdeu o embrião e uma tribo
indígena no seu nascedouro e o Anildo, o título de “Cacique Cabeça Pelada”.
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