FUTURO IMPERFEITO
Freitas de Assis*
A
tarde já se foi e a noite chega com seus mistérios; passa um pouco das dezoito
e trinta quando eu e os quatro policiais que trabalham comigo terminamos de
jantar e novamente embarcamos em nossas respectivas viaturas para dar
continuidade ao trabalho de policiamento ostensivo, mantendo a ordem e paz
características de um meio de semana, sendo que neste horário o trabalho é
reforçado pelas luzes intermitentes vermelhas do giroflex das viaturas que
tingem a noite das ruas de Santa Quitéria. Normalmente atribuímos os dias de
segunda até quinta feira como dias de normalidade e tranquilidade, não
ocorrendo maiores percalços em nosso cotidiano de trabalho, sendo que os fins
de semana geralmente são dias de maior turbulência devido ao fato das pessoas
saírem de seus lares após uma estafante semana de trabalho em busca de prazeres
mundanos e diversão de um modo geral, tomar um chope com os amigos ou apenas
comer uma pizza com a família, ocorrendo, vez por outra, alguém teimar em sair
dos trilhos por conta da ingestão de bebidas alcoólicas em excesso ou mesmo “otrascositas
mas”, causando alguma desordem social em casa ou na rua.
Entretanto, é bom esclarecer que a sociedade de Santa Quitéria é composta de
povo ordeiro, pacífico e acolhedor, não carecendo de maiores cuidados no
tocante à prevenção de crimes na zona urbana, responsabilidade do programa de
policiamento comunitário da Polícia Militar do Ceará, o popular Ronda do Quarteirão,
ocorrendo infelizmente ainda, assaltos e furtos na zona rural, fato auxiliado
pela particular geografia do município e, sobretudo pelo reduzido número de
policiais para patrulhá-lo.
Ao
sairmos do quartel após o jantar, eu e o soldado Lúcio somos interpelados por
um motorista que pára ao lado da viatura e informa que uma briga está ocorrendo
nas imediações do posto de combustíveis São José, distante cerca de 400 metros
do quartel, não dando maiores detalhes. Informo então que já estamos nos
deslocando para o local. Durante o trajeto até o posto de combustíveis, recebo
através do rádio transceptor da viatura informações sobre a mesma ocorrência,
acrescentando que alguém fora lesionado a faca já podendo estar morto, razão
pela qual o motorista da viatura acelera o veículo e no local observamos uma
multidão em torno do corpo de um homem jovem, com um ferimento no peito, muito
sangue derramado e agonizando no asfalto, num girador próximo ao posto São
José. No trajeto até o local do fato, uma miríade de pensamentos invade nossa
mente. Santa Quitéria vive tensos momentos políticos nesta terça-feira, 2 de
outubro de 2012, ápice de uma campanha política para eleição de vereadores e
prefeitos em todo o Brasil para o próximo quadriênio, sendo que um dos três
candidatos ao cargo de prefeito de Santa Quitéria, supostamente sofrera dois
atentados a bala em ocasiões diferentes, sem contar a mútua troca de acusações
de compra de votos por parte dos candidatos e seus correligionários, nem
mencionar o fato do posto São José ser um ponto de encontro de uma das facções
políticas que disputam o pleito. Entre os pensamentos que permeiam nossa mente
no curto espaço de tempo entre o recebimento da informação e a chegada ao local
do crime estão as providências a adotar, como socorrer a vítima, isolar o local
do crime, arrolar testemunhas e, logicamente prender o acusado. Imaginava
também que tipo de crime seria e que motivos o criminoso teve. Foi um crime
passional? Uma discussão banal entre dois bêbados? Quem sabe?
Quando
vislumbrei a cena da multidão aglomerada em redor do corpo ensanguentado e
outras pessoas saindo em carreata em direção a um comício, imaginei a possibilidade
de ser um crime com conotação política. Entretanto nenhuma das alternativas
imaginadas se mostrou real. Desembarcamos da viatura enquanto a outra
composição de policiais chegava pelo outro lado, os soldados Arrais e R. Silva,
e chegando já começam a controlar o fluxo de veículos e também nos auxiliam a
afastar a multidão de curiosos. Instantes depois, quando populares clamavam
para que alguém socorresse a infeliz vítima, chega uma ambulância com seu
característico barulho abrindo caminho em meio a horda de pessoas até conseguir
estacionar com certa dificuldade. Rapidamente alguns homens colocam o corpo já
quase sem vida sobre a maca e depois no interior da ambulância para em seguida,
esta dirigir-se ao hospital para tentar um milagre.
Permanecemos
no local para tentar colher alguma informação. Contudo depois de muitas
perguntas obtendo como resposta apenas um não vi, não sei ou eu cheguei agora,
uma criança, um franzino menino de uns dez anos talvez, nos chega dizendo que
sabe o que ocorreu. Ele nos descreve a cena de uma briga, uma discussão e que alguém
foi em casa, voltou com uma faca e desferiu um golpe mortal no peito de seu
desafeto; o pequeno informante também nos indica o endereço e o nome do
acusado, agora já transformado em assassino, já que a vítima dera entrada no
hospital já sem vida.
O
mais triste de tudo isso é saber quem são os atores desta triste peça de teatro
da vida real: dois adolescentes, duas crianças praticamente, um de dezesseis e
outro de dezessete anos, vítima e acusado respectivamente. Duas infâncias interrompidas.
Duas famílias em dor. Uma com a dor da perda, a dor de pai e mãe que não terão
mais um filho para acalentar; e a outra família com a dor da preocupação, a dor
do temor pela sua segurança, já que havia indícios de represália por parte de
alguns membros da família da vítima. Existe também a dor da impunidade que fica
na sociedade de um modo geral pelo fato de todos saberem que no máximo o
infrator, e não o criminoso, como são chamados menores de idade que cometem
atos que seriam classificados como crime se fosse um adulto que os cometessem,
será condenado a três anos de ressocialização em unidades para jovens
infratores, sendo que a cada seis meses será avaliada a sua conduta e poderá
ficar em liberdade assistida; porém o que toda a sociedade pensa sobre as
instituições destinadas para este fim é que elas não ressocializam ninguém,
dizem que é uma escola de crimes, que quem entra ruim sai pior e que a lei no
geral é muita branda no tocante a quem a transgride.
Após
diligenciarmos para tentar apreender o menor infrator, obtendo resultado
infrutífero, fomos ao hospital,onde o corpo da vítima jazia inerte acompanhada
por alguns parentes transtornados com a barbárie cometida, aguardando a chegada
da viatura do Instituto Médico Legal para sua remoção para a cidade de Canindé
onde será submetido a necropsia; neste meio tempo coletamos os dados da vítima
e, juntamente com os do autor da tragédia, repassamos para o 4º BPM para ser
confeccionada a ocorrência e transformar
os dois protagonistas da triste história em números. Nesse interim, uma
multidão de curiosos se acotovela em frente ao portão do hospital atraída pelo
burburinho de notícias sobre o crime. Apenas pela curiosidade e não pela
solidariedade à família enlutada, a multidão vem ao hospital para ver uma
tragédia alheia, trata o fato de uma vida ter se esvaído tão cedo como um
número de circo, apontando este ou aquele motivo para o desfecho trágico do
encontro entre dois jovens, sem, contudo, lembrar que é tempo de eleições
municipais e que nossos líderes e representantes nos próximos quatro anos
poderiam fazer algo mais por nossos jovens e adolescentes, algo mais pelo
futuro do Brasil.
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PM, colaborador do blog.
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