segunda-feira, 1 de outubro de 2012


O MOTOQUEIRO ENDIABRADO


Augusto Cesar Magalhães Pinto

Quando abrimos a Loja Chapéu de Couro, em 1996, passamos a conviver diariamente com uma variada fauna de prestadores de serviço, notadamente eletricistas, encanadores e pedreiros. O que se via eram operários, que apesar da eficiência e habilidade, mal tiravam o sustento com os dividendos da profissão. Poucos anos depois passamos a perceber a ascensão financeiras desses profissionais. Sem querer fazer nenhuma análise de natureza econômica, até por que não é nossa área, não temos dúvida que a estabilização da moeda e facilidade de crédito foram fatores fundamentais para a transformação.
Foi uma mudança radical que vem se incrementando ao longo dos anos. O Símbolo mais visível dessa mudança se nota, como efeito colateral, através do trânsito caótico, mesmo nas pequenas cidades. Pessoas que antes mal almejavam possuir uma bicicleta, hoje são felizes proprietários de motocicletas e carros.
Dito isto, mais uma vez nos reportamos a singularíssima figura do “Moreno Eletricista”, cuja personalidade e temperamento já descrevemos fartamente em crônicas pretéritas. Ele acompanhou o avanço dos companheiros de forma reticente e somente tempos depois é que fez a primeira aventura adquirindo um celular como forma de aumentar os ganhos já que poderia facilmente ser localizado pela clientela.
A exemplo dos colegas, ele tinha outros sonhos a realizar, no entanto, sempre preferia juntar o dinheiro e comprar à vista por não gostar de dever nada a ninguém. Mandou confeccionar um cofre numa espécie de tubo de ferro e enterrou-o no quarto, chumbando-o com argamassa de cimento deixando apenas o pequeno orifício onde colocava o dinheiro. Tudo isso disfarçado por uma mala de madeira que afastava toda vez que ia guardar suas economias.
Meses depois, de tanto ver seus colegas andando de motocicleta achou que tava na hora de adquirir uma. Arrancou o cofre e fez a contagem entre notas pequenas e moedas e atingiu a cifra de pouco superior R$ 800,00 (oitocentos reais). Seus plano era comprar a moto por esse dinheiro e complementar com o celular. Ao anunciar suas pretensões a notícia se espalhou e logo apareceu um espertalhão que dispunha de uma moto de valor bem inferior e sabendo do montante que o Moreno possuía, supervalorizou o produto vinculando ao capital que sabia existir. A abordagem do vendedor foi sorrateira, ele falou ter tomado conhecimento do desejo do pretenso comprador e veio lhe mostrar o produto e assim concluiu a oferta:
-- Vale mais, mas eu te vendo por R$ 800,00 (oitocentos reais) e o celular.
A moto não era lá essas coisas, mas o Moreno rendeu-se de imediato ao desejo cego de adquiri-la, empregando assim todos seus ativos que possuía. O negócio foi fechado no balcão da Loja Chapéu de Couro, na presença de vários eletricistas que testemunharam a satisfação do colega em realizar seu maior sonho de consumo. O Moreno convidou o vendedor para deslocar-se até sua casa e receber o dinheiro, optando por ir na garupa, uma vez que tinha pilotado uma moto apenas uma vez e não se sentia seguro em enfrentar o trânsito no centro da cidade.
Lá chegando adentraram a residência, o Moreno acomodou o vendedor num tamborete que puxou sob a mesa e pediu que ele aguardasse. Foi até o quarto e trouxe o cofre e despejando o conteúdo sobre a mesa, dizendo que ele ficasse a vontade para contar. Após paciente trabalho constatou-se que batia com o valor acordado, tendo sido tudo colocado numa sacola plástica e em seguida foi entregue o celular junto com o carregador.
O vendedor deu algumas instruções básicas sobre o uso da máquina, sendo a principal recomendação que ao ligar a chaves observasse a luz verde do painel, que é o indicador de que o motor está em ponto morto, estado em que se pode dar a partida pedalando o bufete. O Moreno assistiu a tudo na maior concentração, memorizando a rotina de procedimentos para conduzir o veículo. Já era hora de almoço, porém, o estado de empolgação engoliu sua fome; despediu-se do vendedor e adentrou novamente à residência, desta feita para trazer sua companheira, de nome “Graça”, e a ela apresentar a aquisição que fizera.
Ato contínuo passou a perna na moto e convenceu a Graça a ir na garupa dar uma volta. Ela de princípio relutou, alegando que já estava na hora deles almoçarem, mas acabou por render-se perante a insistência. Há certo custo pôs a moto em funcionamento e assim partiram aos trancos e barrancos. Ele tinha a plena consciência de que não tinha a prática necessária, e assim buscou um local de pouco movimento, logo chegando ao Campo do Romeirão, nas proximidades do então inconcluso Centro de Apoio ao Romeiro, atualmente quase inexistente por ter sido demolido e saqueado por vândalos.
A hora era totalmente imprópria, meio dia em ponto de um dia de muito calor. A Graça ficou sentada sobre uma pedra enquanto o Moreno circulava incessantemente com o objetivo de dominar a técnica com eficiência para poder enfrentar o trânsito caótico da cidade com seus percalços naturais e as vicissitudes.
Foram três longas e exaustivas horas de treinamento; a Graça estava suada cansada e com fome. Já o Moreno era todo animação, não demonstrava qualquer cansaço ou desânimo e cada vez mais se sentia entrosado com a máquina como se fossem velhos camaradas. De repente a moto começou a falhar até que parou de vez.
--- Eu sabia que tu cansava. – Disse a Graça com ares de vitória.
--- Que negócio de cansaço, a “bicha” deu o prego. – Disse o Moreno cheio de preocupação.
Após rápido entendimento deliberaram que deveriam voltar pra casa levando a moto. E assim partiram, o Moreno empurrando a moto agarrado ao guidom, ao passo que ela ajudava empurrando na garupa. Ao chegar a perimetral passou um moto-taxista que os conhecia e parou para socorrê-los e logo constatou que o defeito era falta de gasolina.
O Moreno respirou aliviado, mandou o moto-taxista deixar a Graça em casa, recomendando-a que entregasse dinheiro para que ele adquirisse uma garrafa pet de gasolina e pagasse a corrida. Em pouco tempo tudo ficou resolvido, a moto foi abastecida e com certa dificuldade entrou em funcionamento. Ato contínuo, ele partiu para casa apenas para buscar dinheiro para encher o tanque. Era uma sexta-feira e até tarde da noite ele foi visto percorrendo todos os recantos da cidade, pegando prática e matando o insaciável desejo de pilotar.
No outro dia acordou cedo para dar continuidade a empreitada e ao meio dia já se sentia o mais habilitado piloto que a humanidade conheceu. Enquanto almoçava anunciou à companheira que à noite eles iriam a seresta na Praça Azul, mais precisamente no bar do Babalu. Após a refeição, como fazia invariavelmente, rendeu-se a preguiça invencível e dormiu duas horas de chumbo. Ao acordar deu uma “geral” na moto, lavou poliu e pulverizou, afinal queria fazer bonito na seresta, apresentar sua moto a sociedade nos moldes de um antigo e zeloso pai de família que apresenta sua filha no baile de debutantes.
Tomou banho cedo, arrumou-se e mandou a Graça produzir-se. Ele de pano passado com camisa de manga comprida e ela com um “capi” impecavelmente branco e blusa da mesma cor. A seresta foi anunciada para as 21:00, mas normal era começar com atraso. O Moreno muito ansioso apressou a companheira alegando que eles deveriam chegar mais cedo para pegar um lugar mais aconchegante. Em verdade, estava preocupado em estacionar a moto no local mais visível possível para que pudesse ser apreciada por todos, assim, às 19:30h chegaram ao local, e ela logo reclamou:
-- Adegildo, que doidice é essa tua de vir numa hora dessa, os garçons agora que tão arrumando as mesas.
-- Graça, eu sei o que tou fazendo, tu vai ver como daqui a pouco vai lotar tudo. – Dizia o Moreno cheio de convicção.
Ocuparam de imediato a mesa há poucos metros de onde a moto foi estacionada, o Moreno não se cansava de olhá-la, era como se contemplasse uma bela dama.
De repente chegou o carro conduzindo a aparelhagem de som e o montador constatou que o melhor local para a caixa, era justamente o local em que a moto estava estacionada. O problema foi comunicado ao Babalu que vindo constatar “in loco”, procurou identificar visualmente o proprietário e só vendo o Moreno e a Graça bem produzidos, pelo estado da moto, achou que não pertencia a eles, até que aborrecido indagou indistintamente de dedo em riste:
-- De quem essa porcaria que tá aqui?
O Moreno sentiu o sangue subir-lhe a cabeça perante a blasfêmia que ouvira do promovente da seresta. Pensou em reagir verbalmente e dizer-lhe um monte de impropérios em legítima defesa da honra, todavia, seu temperamento manso falou mais alto, levantou-se resignadamente e deslocou-a mantendo o mesmo cuidado de deixá-la bem visível.
Aguardou mais de uma hora e aos poucos viu chegar e acomodar-se os partícipes do evento, alguns recebidos festivamente pelo Babalu e outros com indisfarçável indiferença. Começaram a circular os garçons que serviam freneticamente as mesas de bebidas e tira-gosto. O Moreno é completamente abstêmio, já a Graça gosta de um cervejinha, mas a aquisição que fizera o deixou descapitalizado e ele optou, sob pálido protesto da Graça, a pedir uma coca cola de dois litros, pois somente assim poderia justificar a ocupação da mesa.
Após pequeno e previsível atraso, começou de a execução dos primeiros acordes e o cantor a soltar seu vozeirão, logo todas as mesas ficaram lotados. O Moreno percebendo a aglomeração deu os primeiros sinais de nervosismo, afinal o plano que premeditara estava a pleno vapor. Fazia pouco mais de meia hora que o conjunto tocava e ele anunciou a companheira:
-- Já tá na hora da gente ir.
-- Que é isso Adegildo a seresta mal começou! – disse a Graça em tom de protesto.
O Moreno ignorou a opinião da Graça e levantou-se no que foi acompanhado por ela. Seu plano era sair de cena com o picadeiro lotado para que todos vissem a sua saída triunfal cavalgando a “possante”. Ambos subiram na moto e o Moreno ficou nervoso a se sentir o centro das atenções. Pedalou o bofete, mas como a moto tava engatada avançava um pouco à frente. Ele lembrou da luz verde que indicava o neutro e após várias tentativas conseguiu encontrar o ponto morto. Toda essa operação deixou a moto “afogada”. Finalmente conseguiu dar a partida e o excesso de gasolina do carburador provocou umá nuvem de fumaça que fez o casal desaparecer por alguns instantes ao passo que alguns outros partiram na carreira, pensando que ela estava incendiando. Mas foi apenas um susto, logo a nuvem de fumaça dissipou-se voluntariamente apenas deixando neles o cheiro forte de gasolina e fumaça alem de mudar radicalmente a cor da roupa da Graça que ficou quase preta.
Evidentemente que o Moreno ficou um pouco constrangido, afinal, além das risadas abafadas, alguns moleques ensaiaram uma vaia. O casal se achava firme sobre a moto, ele foi acelerando ao passo que soltava a embreagem. Para desespero do Moreno a moto não conseguia arrancar, e foi aí que um mecânico de motos que se achava a curta distância avisou que ele estava desengatada. Somente ai é que ele percebeu a mancada e tentou consertar a saída. Deu algumas aceleradas e engatou a marcha de vez sem apertar a embreagem. A moto subiu bruscamente e saltou à frente alguns metros, chegando a bater na caixa de som, enquanto o casal despencava no chão, para o delírio dos presentes, e preocupação do Babalu e dos componentes da Banda que parou de imediato.
O Moreno bateu a poeira e foi apanhar a moto sem se preocupar com as escoriações generalizadas que sofrera, no que foi ajudado por um Simão Cirineu contemporâneo. Levantou a moto e fez uma rápida avaliação do seu estado, juntou os pedaços maiores da carenagem, apanhou a placa e somente aí percebeu que era observado por centenas de pares de olhos. Além do prejuízo estava morto de vergonha. Procurou visualizar a Graça para com ela dividir seu constrangimento. Ela porém foi esperta; tão logo caiu, partiu sorrateiramente para refugiar-se atrás de uma banca de ferro que ainda hoje existe na Praça Azul. Ela esperou o Moreno sair e em seguida partiu a pé, nem pegar um mototáxi ela quis, afinal estava completamente traumatizada, e por meses a fio virava o rosto toda vez que via passar uma moto. Ao chegar em casa deparou com o Moreno que contemplava a moto à curta distância e divisou no canto da sala um monte de pedaços do que um dia foi a carenagem. Ele virou-se pra ela sem aparente ressentimento, mesmo assim reclamou da sua falta de solidariedade abandonando-o ao escárnio da massa de ignorantes frequentadores da seresta. Ela limitou-se a dizer que o culpado era a imperícia dele e que tinha levado uma forte pancada na cabeça passado mal no que foi socorrida por uma bondosa senhora moradora da Praça Azul.
Passados os anos, o Moreno é hoje um experiente piloto, proprietário de uma moto seminova, e de quebra de um automóvel Gol. Dizem as más línguas que ele comprou o carro “à força”, nos moldes dos casamentos forçados de que tanto ouvi falar na minha infância, mas aí já é outra história.

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