quarta-feira, 29 de agosto de 2012


O GRUPO DE ESCOTEIROS
MARECHAL RONDOM


 Augusto Cesar Magalhães Pinto*

No início dos anos de 1970 chegou para reforçar a equipe de franciscanos do Convento de Santo Antônio, o alemão frei Carlos Weber que, paralelamente às suas atividades sacerdotais, deu início nesta cidade ao movimento escotista, fundando o Grupo de Escoteiros Marechal Rondon. De princípio ele cuidou de tudo pessoalmente, mas aos poucos, em função dos seus afazeres profissionais, delegou parte do serviço, principalmente a coordenação de acampamentos, ao religioso frei Domingos Sávio e ao sacristão Assis Lobo, conhecido como «Sizô».
Uma das qualidades que nós admirávamos nele era a inteligência. Poliglota, além da língua pátria e do inglês, falava português fluentemente e com um sotaque pouco carregado, quase brasileiro; era também exímio em taquigrafia e código morse, afora uma comunicação que os escoteiros utilizam à distância com o uso de duas bandeiras. Austero e reservado não era do tipo que jogava conversa fora. Nunca nos falou da sua infância, da sua família nem mesmo da sua formação – era como se sua vida tivesse iniciado com a sua chegada a Canindé. Devia ter naquela época em torno dos 30 anos, e mesmo sendo alemão de nascimento, talvez tivesse pouca ou nenhuma lembrança do período da Segunda Guerra Mundial; no entanto, sua infância e juventude, certamente foram marcadas pelo período pós-guerra com todo o seu agregado natural de traumas, desabastecimentos e privações.
Era notório o seu desapego aos bens materiais. Durante todo o tempo que aqui permaneceu, só o vimos vestido com a sua batina surrada calçando chinelos de couro, cujo cabresto era um parafuso, ou com a indumentária de chefe de escoteiro. Entre as suas excentricidades, usava uma segunda escova de dentes, surrada, para pentear os cabelos, cortados quase no zero. Tinha também um segundo par de óculos de grau, desses comprados aos camelôs, o qual tinha um elástico amarrado e que ele utilizava para tomar banho de açude. Era do tipo atlético, nas caminhadas era célere e incansável, e na água, um autêntico peixe; desconheço qualquer pessoa que nadasse ou mergulhasse como ele.
Geralmente, em todo grupo de pessoas existe aquelas que se destacam pelos mais diversos motivos: dotes artísticos, capacidade de aprendizado, facilidade de se relacionar ou qualquer outro atributo que concorre para uma melhor aceitação perante o detentor do poder. Com ele nada disso funcionava, era completamente imparcial e igualitário, ninguém recebia de sua parte qualquer privilégio ou retaliação.
Uma das marcas que carrego comigo desde aquela época é o cumprimento de horário. Frei Carlos Weber não admitia atraso nem de segundos. Nossas reuniões eram sempre aos sábados às 14h. De princípio, nas proximidades do campo de futebol da CNEC velha e posteriormente no local onde hoje se acha a Praça dos Romeiros. Nosso costume era chegar meia hora antes e aguardá-lo na saída do Convento para, em grupo, nos dirigirmos ao local da reunião. Lembro-me que, certa vez, ele marcou uma reunião a ser realizada no próprio convento e disse que estivéssemos no interior do hall de entrada no horário de sempre. No dia e hora marcada ele, que estava por dentro do Convento, veio sorrateiramente até à porta e na primeira pancada do sino, marcando às 14hs, abriu-a bruscamente surpreendendo a todos nós que estávamos na parte de fora da entrada. Somente um dos nossos estava perfilado no lugar determinado. Sem mais delongas, dispensou a todos e fez a reunião somente com uma pessoa. Depois desse dia nós nunca mais chegamos atrasados.
Tinha uma autêntica veneração pelas datas cívicas, geralmente conciliando com as atividades da igreja. Era comum no Dia da Pátria, da Proclamação da República e no Dia da Bandeira, nós irmos assistir a uma missa na basílica, celebrada por ele, e em seguida nos dirigirmos ao patamar onde hasteávamos o pavilhão nacional e a bandeira dos escoteiros, tudo isso ao som do seu apito estridente.
Em todas as reuniões, antes do hasteamento do pavilhão nacional, nós formávamos uma espécie de ferradura, ele passava em revista a tropa e era exigente quanto à indumentária. Queria o fardamento limpo, engomado, dotado de todos os botões e de insígnias, além de sapatos engraxados. Certa feita ele reclamou do escoteiro Sobral em virtude da camisa dele faltar um botão advertindo-o que não admitiria mais esse tipo de falta. Na reunião seguinte, ao fazer a inspeção, notou que o nosso amigo não tinha providenciando o botão. Chamou-o ao centro da ferradura (semicírculo) e de posse de um canivete arrancou todos os demais, inclusive os da calça curta, entregou-os ao Sobral que saiu com a mão esquerda cheia de botões e a direita segurando as calças no rumo de casa. O caráter pedagógico dessa medida, que nos dias atuais poderia resultar num processo por constrangimento ou danos morais com o agravante de ter sido aplicado contra um menor, teve um resultado totalmente positivo: nunca mais vi naquele grupo qualquer pessoa sem os seus devidos botões.
Naquela época, quando mal se falava por aqui em ecologia, ele já tinha uma grande preocupação sobre o assunto e nos ensinava o respeito aos animais, às plantas e à preservação da natureza. Quando acampávamos, geralmente nas fazendas São Paulo ou Salgado, ele determinava que qualquer lixo por nós produzido fosse enterrado de maneira que não ficasse nenhum vestígio da nossa passagem.
Frei Carlos Weber marcou toda uma geração de meninos através dos seus ensinamentos e da sua personalidade forte. De temperamento comedido, não era do tipo que se podia classificar como afetivo, era mais como uma espécie de pai à moda antiga, zeloso e severo. Sempre que converso com alguém que foi seu discípulo, existe uma unanimidade em relação à imagem que guardamos daquele filho de São Francisco, que afora as suas excentricidades, foi para todos nós um exemplo de humildade, fraternidade, lealdade, altruísmo, responsabilidade, respeito e disciplina.
Meu grande mestre talvez nunca venha a ler nem mesmo tomar conhecimento desta crônica, no entanto, a ele dedico-a com respeito e gratidão.

*Autor dos livros Viagem pela história de Canindé e Histórias de nossa terra e de nossa gente. 

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