segunda-feira, 16 de abril de 2012


Recebi esta correspondência do meu amigo "cumpade" DJACIR AIMORÉ MARTINS e publico-a, haja vista a descrição que ele faz de um cenário tipicamente matuto, em que ele mergulhou num passeio onírico... A copiosa citação de coisas regionais, nessa carta, dão a ideia precisa do sertanejo que habita o citadino Djacir. A correspondência foi-me entregue por ele mesmo, durante animada reunião na casa do radialista Tonico Marreiro, em Caridade, Ceará, no dia 15/4/12. 

ESTIMADO CUMPADE PEDRO…

Djacir Aimoré Martins
Sabe, «cumpade», eu ontem tive um sonho, e sou ruim de sonho! Foram cenas que estavam hibernando em algum ponto do meu cérebro e foram reativadas, acredito, pela foto da poça dágua com a saparia espumosa e cantante, sendo o gatilho que disparou nítido e claro o retorno feliz às cenas da minha infância.
O ano eu não sei, mas o mês me pareceu um chovedor abril. Caminha eu devagar por uma vereda transformada em riacho pelo muito que já estava encharcado o solo da há pouco arenosa e poeirenta caatinga. E com prazer pisava aquela água corrente passando cristalina e fira, por entre os pequenos e belos seixos ovais e lisos. Abaixei-me e, com as mãos em concha, bebi, matando a sede na água pura de um inverno no sertão. Despertei para o efeito da clorofila que havia banhado de verde em merecidos e variados tons, inerentes a cada vegetal componente da flora sertaneja no inverno.
O marmeleiro vestia seu tom de verde, o mofumbo também, a jurema, o pau-branco, a catingueira e o pereiro ali presentes formando o cenário do palco em que a Natureza começava um espetáculo para aquele menino solitário e amedrontado ali presente. Contemplava as chananas floridas sendo sobrevoadas por uma esquadrilha de borboletas multicoloridas. A vereda terminava, se espalhando por um vasto e verde tabuleiro.
Minha atenção foi despertada por um gaiteado que instantaneamente me pois na defensiva, e corri para o meio do tabuleiro subindo numas pedras. Era um boi «caga vereda» que vinha descendo a vereda atraído por algumas vacas no cio que pastavam no capim gostoso do tabuleiro.
No entanto, «cumpade», um touro zebu, o dono daquele harém, que pastava tranquilamente, levantou a cabeça e emitiu um potente urro como só os zebus o fazem, olhando na direção de onde vinha o gaiteado do desafiador tourinho pé-duro. E foi marchando o zebu de encontro ao audacioso e sub-desenvolvido toureco. E,  instantaneamente, começou o embate dos dois machos que se engalfinharam começando com o «pé duro» em aparente desvantagem. E reviravam a terra, e pedras, o corpulento zebu com os chifres curvos para dentro, algumas vezes levantando o toureco pela barriga e atirando-o a distância. Mas o toureco teimoso levantava-se e por ter chifres afiados virados para frente, partia para o zebu atingindo-o em alguma parte de onde eu via o sangue escorrer. E engalfinhados sumiram no mato onde tombaram juremas, paus-brancos, pereiros e outros... e também ouvia o estalar de paus quebrando.
O medo passara e eu já ansiava pelo retorno dos contendores à arena, quando de repente o mato balançou e dali espirrou o antes majestoso zebu, seguido de perto pelo impertinente «caga vereda» que ainda tentava montar o zebu, para cúmulo da desmoralização.
Batendo em retirada, o zebu, adentrando o lado oposto do tabuleiro, fez com que meu heroi voltasse sempre gaiteando e se dirigindo a uma lustrosa e roliça vaca com quem parecia até haver combinado aquele encontro, pois a distinta não deu trabalho algum para entregar o «ouro». Acho até, «cumpade», que o zebu ainda está correndo pela caatinga! E aquela fuga encerrava o primeiro ato do drama que a Natureza proporcionava ao deslumbrado menino observador único mas inserido também no elenco por se tratar de um autêntico menino sertanejo que se tornaria um homem cheio de devoção à Mãe Natureza, disto fazendo religião.
Picadas de mutuca me despertaram do choque e me dei conta que o espetáculo continuava. Virando-me, atraído pelo ensaio cantante de uma seriema cuja companheira trazia no bico uma tejubina, vi um teiú tomando sol numa pedra a poucos metros de mim. E as seriemas, quando me perceberam, alçaram voo e pousaram numa aroeira bem no aceiro da verde caatinga.
Porém, grande susto me aguardava.
Um preá em desespero saltando em ziguezague tentava inutilmente escapar de uma corre-campo que lhe vinha no encalço. O alvo dele eram as pedras, onde eu me encontrava encastelado, para tentar escapar. Saltei para pegar um seixo e atirar na cobra, mas fiquei paralisado ao vê-la abocanhar no ar o infeliz roedor e com este desaparecer no capinzal. E nova surpresa me assaltou.
Do mato vinha um ruído que logo identifiquei ser a foz potente do barítono do sertão, o jumento, que de cabeça erguida e os dentes à mostra perseguia três jumentas que em vão tentavam vender caro a honra...
Um gavião penerê que pairava ali b em perto, como um raio deu um mergulho emergindo do capim e ganhando a altura com um descuidado calango entre as garras. Chamou-me a atenção um bando de periquitos que na algazarra característica e o voo desengonçado procuravam algum roçado para saquear. Em seguida, um casal de asa-brancas, parecendo flechas cinzentas disparadas com destino certo, cruzou o céu. Mas, de súbito, «cumpade», a cortina caiu me deixando a sensação semelhante à de um orgasmo incompleto. O maldito disparo do alarme de um carro havia me acordado. E com a sensação de perda por saber que deixei de assistir a mais alguns atos de manifestação do braço de Deus - a Natureza - reconsidero e sinto-me feliz porque só tendo sido um autêntico menino sertanejo, para ser agraciado com tão belo sonho.

Ao caríssimo e estimado «cumpade» Pedro Paulo Paulino, com o abraço do Djacir.

Fortaleza, Ceará, 15 de abril de 2012.

Conheça o blog MISSIVAS DO DJACIR:
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