segunda-feira, 27 de fevereiro de 2012

Faço questão de transcrever esse texto do escritor fortalezense Cláudio Portella, publicado no dia 14/2/12 no blog Musa Rara.

A VASTA VISÃO DO CANTADOR 
CEGO ADERALDO


Por: Cláudio Portella
Comum, em minha infância, apelidarmos as crianças que usavam óculos – nossos amigos de sala de aula, das brincadeiras em final de tarde na nossa rua – de Cego Aderaldo. Os nerds de hoje, por conta dos óculos, são os Cegos Aderaldo de minha infância. Temo o apelido se extinguir, nos novos tempos de nerds e de grande crescimento tecnológico.
Toda vez que chamarmos alguém de Cego Aderaldo estaremos, mesmo inconsciente, evocando a figura do fenomenal cantador.
Cego Aderaldo nunca escreveu um livro – o mais próximo a que chegou foi narrar sua história ao escritor Eduardo Campos -, sequer um cordel. Quase não sabia ler, mas assinava o nome, compunha acrósticos e aprendeu a ler em Braille. Para saber as horas, usava um relógio com o mostrador em alto relevo. Tinha o verso preciso, a palavra justa. Foi um cantador itinerante, um artista do bom improviso. Aos acordes de sua viola, seu cantar era exato, redondo, suas rimas perfeitas. Não se repetia. Daí sua enorme vantagem sobre os demais cantadores. Seu vocabulário era fácil, acessível a todos. Sua palavra, cantada, tinha muita força simbólica.
A obra de Cego Aderaldo é um manancial de ricos achados orais. Foi estudada por grandes mestres folcloristas: Luis da Câmara Cascudo, Edson Carneiro, Leonardo Mota, Alceu Maynar de Araújo etc.

Aderaldo Ferreira de Araújo era mais do que suas rimas poderiam deixar supor. É o que hoje percebemos, a sublimação entre folclore e cultura. Por mais que possa assemelhar-se, no imaginário popular, Cego Aderaldo não é um mito, muito menos uma lenda. É uma saga. Para ser ouvida sob uma bela lua em terreiros do país inteiro. Ou nas salas de aula das nossas escolas e universidades. Por que não?
Pesquisando descobri fatos sobre Cego Aderaldo que jamais imaginaria. Chego a jurar que muita gente também não. O maior deles: a obra Peleja do Cego Aderaldo com Zé Pretinho do Tucum não é da autoria do Cego. O autor é Firmino Teixeira do Amaral.
Firmino foi um poeta de bancada, daqueles que pouco sai de casa. Perfeita antinomia de Aderaldo. Cego Aderaldo era um matuto de porte avantajado, espadaúdo, quase dois metros de altura, forte, cabeleira bonita, um tipão. Cantador por excelência. Correu o sertão e fez fama com suas cantorias. Cantava obras de amigos, aliás, muitos amigos. Era uma legenda, amado de uma ponta a outra do Nordeste. As garotas faziam a festa quando o viam. Tinha uma voz de barítono, uma linda voz. Era uma honra ter cordéis propagados por ele.
Tanta fama angariou que quando morreu, em 30 de junho de 1967, aos 90 anos de idade, sepultado no cemitério São João Batista, em Fortaleza, foi homenageado por um cortejo de cantadores cujas violas traziam fitas negras, improvisando parlapatices sobre o Mestre.
Seus pés conheceram o pó de muitas estradas. Quando jovem, galgou serras e chapadões; varou caatingas e vadeou brejos. Por todos os caminhos levava seu cantar. Cantou em Baturité, em Canindé, no Crato, em regiões do Cariri. No início, cantava somente uma, duas horas. Depois foi ficando ousado, garboso, e virou cantador de três noites. Deixou o sertão e partiu para Fortaleza. Começou cantando nas pontas de rua, mas depois cantou para governantes e potentados. O ano era 1906, nessa época, ainda não havia estudiosos da cultura popular. E os cantadores eram pouco valorizados na cidade grande.
Teve que voltar pro sertão: de Ubajara a Viçosa, sempre cantando. E, finalmente, Pedro II. Lá, chega cansado. Ganhara oito mil réis, entretanto, andara em demasia e os seus pés estavam em estado deplorável. À sombra de um alpendre de uma casa de fazenda, seu guia extraiu-lhe mais de cinquenta espinhos de cada pé.
Saudades de sua terra, Quixadá. Aderaldo percebe que é hora de voltar. Corria o ano de 1914. Ano de boas chuvas e de muitas guerras. O sertão em brasa. A Guerra do Juazeiro. A Guerra no estrangeiro. Tudo piora para Cego Aderaldo. Vem o ano de 1915, o da famosa “Seca do Quinze”, tão bem retratada pela então iniciante Rachel de Queiroz, no seu primeiro romance O Quinze.
Aderaldo agradece aos céus por ser cego. A miséria foi devastadora. Muitas mortes, o sertão era agora um purgatório. Pai vendendo filha, criança morrendo de fome em plena caatinga e servindo de pasto aos urubus.
Cego Aderaldo não suporta tanto flagelo e toma a decisão, já que muitos estavam imigrando para lá, de ir também para o estado do Pará. No navio, Aderaldo canta:

“Canto para distrair
Este meu curto poema:
Vou fugindo da miséria
Que é este o penoso tema,
Desta terra de Alencar,
Deste berço de Iracema.

Fugi com medo da seca,
Do pesadelo voraz
Que alarmou todo o sertão
Da cidade aos arraiais.”

Cego Aderaldo volta para o Ceará em 1919. Encontra o Estado em festa, o sertão verdejante. Chovia. Aderaldo ouvia o sertanejo falar da beleza da natureza, da fartura da roça, com alegria e arrependimento por ter fugido de sua terra jurou nunca mais abandonar seu Estado natal.
Fixou-se em Quixadá, só saindo de lá em 1923, para fazer uma cantoria em Serra Verde na fazenda do Sr. Francisco Botelho, que era amigo pessoal de Padre Cícero. Aderaldo sempre nutriu o sonho de conhecer o Padre que, para ele, era mais que um condutor de almas, era um guia espiritual, o fundador de Juazeiro. De posse de uma carta de apresentação do Sr. Botelho, foi para Juazeiro. Nessa época, já era cantador famoso. A notícia da chegada dele correu logo. E muitos vinham falar com ele. Mas o que Aderaldo queria mesmo era se encontrar com o Padre Cícero, estava ansioso.
Padre Cícero, que só andava seguido por uma multidão, parou em frente da casa onde Aderaldo estava hospedado, fez sinal para a multidão ficar do lado de fora, e entrou. Encontrou Cego Aderaldo nervoso, mas muito altaneiro. O Cantador fez uma cantoria para o padre:

“O Nome do Santo Padre
anda pelo mundo inteiro.
A cidade está crescendo
com este povo romeiro.
Devido às grandes virtudes
do Santo de Juazeiro.

Nossa Senhora das Dores
é que nos dá proteção.
Ordena ao nosso bom Padre
e ele cumpre a Missão.
Ensinando a todo mundo
o ponto da salvação.”

Em 1931, Cego Aderaldo cansado de viajar pelo sertão sempre cantando, todo o povo queria ouvi-lo, resolve comprar o que, então, era a grande novidade em Fortaleza: um gramofone. Aplicou o que tinha, cem mil réis, e adquiriu o gramofone, discos e agulhas. Voltou a viajar pelo sertão, desta vez com a geringonça a tiracolo. Cobrava cem réis por disco tocado. Os discos, de tanto tocarem, estragavam-se rápido. Cego Aderaldo ganhou muito dinheiro com o gramofone. No final da “apresentação”, sempre insistiam para o cego cantar.  E ele tinha que cantar, nem que fossem alguns versos.
Em 1933, com um bom dinheiro propiciado pelo gramofone, o cantador põe em prática mais uma de suas ideias. Compra uma máquina exibidora de filme, uma “Pathé Baby”, e dois burros. Consegue algumas fitas variadas e se embrenha novamente no sertão. Dessa vez, como exibidor de filmes.
Seu cinema itinerante ficou logo famoso. Suas fitas eram antigas, muitas, deterioradas, e tratavam da chegada do Rei Alberto, da Bélgica, ao Brasil, e de fatos pitorescos da vida de Napoleão Bonaparte.
O filme era projetado num lençol branco amarrado na janela da casa, e Aderaldo, que sabia o que se desenrolava na fita, ia descrevendo as cenas.
O filme mais completo que Aderaldo possuía era a Paixão de Cristo, que suscitava muito choro quando era projetado.
A partir de 1943, com 64 anos de idade, Cego Aderaldo percebe, de vez, que sua estrela para os negócios não brilhava feito a sua estrela para a cantoria. Todos o queriam ouvir cantar. De viola na mão, voz altiva e ombros altaneiros, percorre os estados de Pernambuco, Maranhão e Piauí.
Parou de aceitar desafios em 1945, com 67 anos. Já havia gravado seu nome, com letras maiúsculas, no livro da história da cantoria popular. Estava sereno e não o agradava mais a ideia da “ira” contra um cantador oponente. Desde então, só cantava. Fez versos de louvor a Carlos Lacerda, de entusiasmo ao brigadeiro Eduardo Gomes, de gratidão a Juscelino Kubitscheck (foi quem lhe concedeu a aposentadoria), por ocasião do falecimento de Leonard Mota, sobre o desastre aéreo que vitimou Castello Branco etc.
Nunca se casou. Mas criou vinte e seis meninos. Todos os meninos usavam o nome “Aderaldo” em combinação com o nome de batismo. A grande maioria foi seu guia. Nutria pelos filhos dos outros grande apego, que ia além de tê-los como companheiros de trabalho. Tinha-os como filhos de sangue. O penúltimo foi Mário Aderaldo Brito (seu pai, Francisco Brito, também fôra criado pelo Cego, o que tornava Mário uma espécie de neto de Aderaldo), que o acompanhou durante vários anos, até se casar. Mário foi o melhor guia do Cego (Aderaldo o chamava de “minha vista”), e o acompanhava tocando rabeca.
O último guia do Cego chamava-se Marconi.
Viveu os últimos anos de vida em Fortaleza, onde manifestou o desejo de ser enterrado na mesma cidade. E assim o foi.

3 comentários:

  1. Cumpade Pedro: oportuna a postagem em seu blog desta crônica do escritor Cláudio Portella sõbre o quase esquecido Cego Aderaldo. Será que a estátua dele em Quixadá ainda está de pé?
    O Djacir

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    1. Cumpade Djacir, não sei te informar, mas conheço o monumento ao Cego Aderaldo em Quixadá, nas imediações do terminar rodoviário daquela cidade. Tomara que a estátua do grande menestrel ainda esteja no lugar e fisicamente íntegra. Obrigado pela visita à esta casa de taipa.

      Com o abraço do cumpade,

      PPP

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  2. Duas informações: A estátua do cego Aderaldo, existente nas imediações do terminal rodoviário de Quixadá, foi construída por iniciativa da Casa do Cantador, de Fortaleza e foi esculpida pelo também cantador Alberto Porfírio.

    2 - Estou lendo um livro do poeta Pedro Costa que traz boas referencias sobre o poeta Firmino Teixeira do Amaral, autor da célebre Peleja de Cego Aderaldo com Zé Pretinho do Tucum. Ao contrário do que afirmam muitos pesquisadores, ZÉ PRETINHO DO TUCUM não é um personagem fictício, trata-se, segundo PEDRO COSTA, de um personagem real, nascido em meados do século XIX em Angical-PI e falecido em 1910. Como a peleja foi publicada em 1916, o encontro entre os dois cantadores é improvável, sendo realmente uma ficção criada pelo engenhoso Firmino Teixeira, Piauiense de Amarração, nascido em 1886 e falecido em 1926, segundo apurou o pesquisador Ribamar Lopes.

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