segunda-feira, 19 de dezembro de 2011


MIGUEL CARPINA


Augusto Cesar Magalhães Pinto*

Desde os primórdios da minha infância eu já escutava falar em Miguel Carpina, antigo proprietário da fazenda São Joaquim, que fica na margem da estrada que liga Canindé ao Bonito. Seu nome completo era Miguel Carpina de Sousa, mas todo,s quando contavam suas histórias, o chamavam de “Miguel Carapina”, uma pequena corruptela do seu nome de batismo. Apesar do pouco estudo era tido como muito inteligente e espirituoso, uma espécie de “Quintino Cunha” dos sertões canindeenses.
Sua fama não se restringia apenas a Canindé, suas tiradas de improviso animavam qualquer roda de conversa e os seus causos, se bem apurados e catalogados, dariam um bom livro. O renomado escritor Leonardo Mota em seu livro “Sertão Alegre” narra alguns causos protagonizados por Miguel Carpina.   Meu querido amigo e irmão maçom Plautus Cunha (hoje falecido), autor de diversos livros entre o quais “Anedotas do Quintino”, escrito em homenagem ao seu pai, o festejado advogado Quintino Cunha, chegou a catalogar anedotas de Miguel Carpina, inclusive publicou algumas em meio aos seus escritos de humor. Da mesma forma o escritor e cordelista Arievaldo Lima, no seu livro de humor “O Baú da Gaiatice” narra alguns episódios envolvendo o nosso homenageado.
Todos eles retratam ricamente o espírito bonachão e a irreverência daquele sertanejo forte que esbanjava bom humor, o modo simples de ser e viver o nordestino da caatinga que como tão bem descreveu nosso confrade, Dr. Clauder Arcanjo,  no prefácio de nosso segundo livro “Histórias de Nossa Terra e de Nossa Gente”: “Espécime tão afeita ao riso, apesar das chagas do tempo a calcinar-lhe a pele, mas nunca seu espírito de luz e de graça”.
Tratava-se de um tipo popular que além de exercer suas lides de agropecuarista, gostava de fazer negócios com gado e animais de menor porte,  gêneros alimentícios de toda espécie e produtos de manufatura sertaneja. Sempre foi um assíduo freqüentador do Mercado de Canindé onde negociava os frutos do seu labor. Um homem educado na escola da vida, uma força da natureza que se comunicava com toda facilidade e estava sempre rodeado de pessoas.
Anteriormente, o Mercado de Canindé funcionava na Praça Cruz Saldanha, conhecida como Praça Azul, mais precisamente naquele quarteirão onde hoje funciona o DETRAN. Era em verdade um mercado particular, pertencente à família Cruz, haja vista ter sido construído no último quartel do século XIX, por um respeitável varão da família, tenente José Cordeiro da Cruz, que o deixou como legado aos seus descendentes. A feira se dava no terreno onde hoje se acha construída a dita praça e alguns negociavam no pátio interno do inconcluso Mercado.
Em 1948 o dinâmico prefeito Tomaz Barbosa Cordeiro teve a ideia de construir um Mercado novo e maior. Como não poderia deixar de ser, houve gigantesca resistência, uma luta fratricida em torno de interesses contrariados e um grande desconforto na forma de rixas familiares. Todavia prevaleceu o bom senso, que resultou na mudança acertada e imprescindível para Canindé, que em pouco tempo teve significativos avanços progressistas e a transformação radical do centro da cidade com a abertura, expansão e pavimentação de ruas.
A atitude de Tomaz Barbosa foi um marco para nossa história, ele usou do seu prestígio para conseguir a cessão do terreno então pertencente ao capitão Jose Otoni de Magalhães, que relutou de princípio, mas acabou se dando por convencido perante os argumentos sólidos e insofismáveis do prefeito que além de primo era seu grande amigo. A etapa seguinte era convencer os comerciantes a acreditar na viabilidade do empreendimento que era a ponta de lança do seu arrojado projeto administrativo. Por ter larga experiência como projetista e construtor, o próprio prefeito desenhou a planta do Mercado e passou a convidar os comerciantes a construir seus pontos de conformidade com o projeto que traçara. De princípio houve certa relutância, até que seu genro, Sr. César Campos, homem de extrema visão e notável tino comercial, construiu de imediato a quarta parte do empreendimento projetado, dando com esse exemplo uma injeção de confiança nos que estavam reticentes. Estabelecia-se assim uma parceria público-privada que até hoje permanece. O Mercado tem seu quadrilátero externo formado por prédios particulares e seus boxes da parte interior pertencem à municipalidade.
Não tenho conhecimento de nenhum outro Mercado, pelos menos aqui nesse Estado, que tenha tal composição. Tudo graças ao talento, à competência e credibilidade do grande Tomaz Barbosa, que com espírito conciliador conseguiu esta parceria permitindo ao município, com um mínimo de recursos, levar a cabo um empreendimento de tal magnitude.
Naquela época tínhamos uma acanhada feira semanal no Mercado velho, e a mudança naturalmente foi incrementada pela condição estrutural do novo Mercado, um espaço amplo e privilegiado que passou a atrair negócios até de municípios vizinhos, notadamente da serra de Aratuba de onde vinha café, rapadura, mel de engenho, além de frutas e verduras.
Os produtores negociavam diretamente seus produtos na feira sendo que muitos chegavam na noite da sexta-feira e a maioria na madrugada dos dias de sábado. Tão logo o Mercado abria, adentravam no amplo espaço com seus comboios, onde descarregavam as mercadorias, retiravam os animais para logo a seguir vir arrumar as mercadorias, com intuito de atender a freguesia que comparecia em massa. Essa era a regra, mas sempre havia os recalcitrantes que de maneira ousada deixavam os animais no interior do mercado, terminando por incomodar a todos, sujando o espaço com esterco e trazendo a fedentina característica da urina dos equinos.
O município, através do gestor municipal, atendeu aos reclames da população e passou a disciplinar a entrada de animais e a obrigatoriedade de retirá-los de imediato. O cumprimento de tais determinações ficaram a cargo do Joaquim Barbeiro que além de exercer as funções exigidas pelo apelido, fazia bico como fiscal da prefeitura e, eventualmente, como garçom. De princípio, tudo funcionou a contento, todos obedecendo as determinações da municipalidade. No entanto, aos poucos houve um relaxamento e não demorou a voltar tudo como era antes e os comerciantes estabelecidos voltaram a reclamar, obrigando o prefeito a determinar definitivamente a proibição da entrada de animais.
Desta forma os feirantes passaram a descarregar seus animais do lado externo e transportar as mercadorias nas costas. Houve veemente protesto daqueles que obedeciam as regras, mas sempre nessas horas o justo paga pelo pecador. Ficou determinado que aos sábados somente o portão do lado do poente abriria às três horas da madrugada para os feirantes adentrarem a arrumar suas cargas e os outros portões a partir das cinco horas. Assim, nas primeiras horas da madrugada do dia de feira, o Joaquim Barbeiro se apresentava todo fardado com seu uniforme verde, portando embainhados um cacetete de um lado e uma lanterna do outro, além de fornido molho de chaves preso a uma argola, disciplinando a entrada com seu vozeirão.
Miguel Carpina chegava sempre na véspera da feira para pernoitar e antes da meia noite seus parentes arrumavam os caçuás dos animais com as mercadorias a ser comercializadas na feira e ao primeiro estalo da “macaca” o comboio partia da Fazenda São Joaquim para Canindé, desacompanhado, tendo à frente uma “famosa” e agigantada jumenta cardã que liderava o lote. Era uma época de extrema calmaria e não existia a ação de meliantes, um tempo em que o jumento do leiteiro só não fazia sozinho a entrega do produto de porta em porta para não desmoralizar o dono.
 Na hora costumeira o Joaquim Barbeiro abriu o portão e os primeiros feirantes começaram a adentrar com seus pesados fardos. Miguel Carpina chegava pouco depois e de imediato se dirigia para a barraca da D. Mocinha, situada no lado leste do interior do Mercado onde tomava um fumegante café donzelo enquanto proseava animadamente com os freqüentadores habituais, sempre  atento ao badalar dos sinos do relógio da basílica que anunciava cada quarto de hora. Na hora presumida da chegada do seu comboio dirigiu-se ao único portão aberto, quando divisou sua jumenta adentrando no Mercado acompanhada dos seus outros animais. De repente ouviu a voz gravíssima de Joaquim Barbeiro que de braços abertos esbravejava com a asinina.
– Aqui não pode entrar animais, ordem do Sr. prefeito!
A jumenta ignorou a proibição e prosseguiu sua marcha inexorável quase atropelando o vigia que, em vão, tentava fazê-la retornar. Estabelecia-se o impasse: o animal buscava romper a marcha a passo curtíssimo forçando a entrada enquanto Joaquim Barbeiro fazia barreira com o próprio corpo agarrando-a pelo pescoço, e mantendo seu rosto colado a cabeça dela, numa espécie de abraço vigoroso, fazendo uso de todas as forças que lhe restavam.
Miguel Carpina, que contemplava a cena a curta distância finalmente soltou:
– Essas duas criaturas fazia muito tempo que não se viam…
Ouviu-se uma estrondosa risada dos presentes. Canindé naquele dia quase acorda mais cedo.

*Autor dos livros "Viagem pela História de Canindé" e "Histórias de Nossa Terra e de Nossa Gente".

NOSSA LÍNGUA
Rascar Tagarelar, falara demais, no sul da BH. 

3 comentários:

  1. O texto do escritor César Magalhães é interessantissimo. Além de resgatar saborosas anedotas de Miguel Carpina tem o mérito de registrar também alguns trechos da história de Canindé, notamente no que diz respeito à construção do Mercado Público. Através de meus familiares mais antigos tive notícias do Mercado da Praça Cruz Saldanha, onde negociava o comerciante José Karam. Meus avós alcançaram o velho mercado, para onde vinham pela antiga estrada que passava pelo bairro São Mateus, oriundos do interior de Quixeramobim. O Mercado atual eu conheci em meados da década de 1970, próspero e movimentado, tendo a Casa Campos e a Casa Marreiro como estabelecimentos mais famosos.
    Parabéns ao César pelo texto.

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  2. No livro do Leota, citado pelo César, há este episódio, que, segundo o Arievaldo Viana, foi reproduzido pelo Barão de Itararé no seu Almanaque... que o pesquisador me corrija, sendo o causo...

    O DEFEITO DO BURRO

    O coronel Tomás Barbosa precisava comprar em Canindé um burro novo e possante. Era no tempo em que automóveis-caminhões não faziam ainda o transporte de mercadorias, recebendo-as ou deixando-os à margem da ferrovia, em Itaúna. Indo à povoação de Campos Belos, o Cel. Tomás indagava se poderia adquirir ali um animal nas condições referidas.
    - Eu tenho um, seu coronéu! Ofereceu o Miguel Carpina.
    - É burro novo, ou é burro de idade?
    - É novo, é novo!
    - E é forte?
    - Forte? Como não conheço outro! Carga de oito arroba pra ele é brincadeira de menina feme. E dá-se disso: o bicho está gordo que está de rego aberto, é uma peça famosa e não tem pisadura nem nas sarneias, nem no espinhaço. Até pra sela ele serve. Não é passarinheiro , e quando acaba, passeiro não vejo outro. Burro andador! Quanto mais anda, mais tem vontade de andar! Não há caminho que chegue...
    - E onde está ele?
    - No cercado. É perto. O senhor querendo eu mando buscar. Comprou, comprou; se não comprou, não vejo agravo.
    - Pois mande buscar.
    Meia hora mais tarde, o garbo solípede era apresentado ao Cel. Tomás Barbosa. Efetivamente, era um burro novo, grande e gordo. Cardão, que é a cor dos animais resistentes. Tinha, porém, um defeito. Ainda novinho, um bicheira lhe levara a metade do beiço superior. O Cel. Tomás Barbosa viu isso e não quis o negócio:
    - Ora, Miguel, seu burro é defeituoso: falta metade de um beiço... Por que você não me disse isso logo?
    - Eu não disse, seu Coronéu, porque eu tava na mente que Vossa Senhoria queria era um burro pra carregar carga. Agora é que estou vendo que Vamincé quer é um burro pra assobiar

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  3. Perfeitamente, Sílvio. A anedota do Miguel Carpina encontra-se no ALMANHAQUE DO BARÃO DE ITARARÉ para o ano de 1949.

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