sábado, 19 de novembro de 2011

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A SÁTIRA EM FORMA DE ORAÇÃO

Fonte: Almanaque do Pensamento

Há quem afirme haver sido o propósito de falar com Deus o ponto inicial da canção. O primitivo cantava como forma respeitosa e também eficiente de mostrar respeito, gratidão e de apresentar pedidos à divindade que dominava de forma absoluta o mundo em que ele vivia. Teria sidoassim por muito tempo, na longa escalada da evolução humana.
Só à medida em que ganhava auto-confiança, o homem foi transformando o canto-oração em arte e deleitando-se com ela, educando a voz, criando diferentes tipos de manifestações vocais. Até o canto encontrou diferenciações que, para efeito do registro folclórico que desejamos apresentar aqui, podem resumir-se em: eruditas ou cultas e populares. Das populares, fruto da genialidade picaresca do homem do povo, fiquemos no campo das realizações folclóricas. Ou seja, autoria desconhecida, resultante do trabalho coletivo do povo, difusão por via oral na época inicial.
Usando a forma de oração
Alguma coisa da função original deste tipo de canção permaneceu no fundo da alma popular, isto é, uma certa religiosidade. No aceso das disputas civis, das guerras patrióticas, nos tempos de costumes em transformação, o homem sentiu a necessidade de servir-se de todas as armas disponíveis para se defender e, como parte agressiva da defesa, atacar o adversário. Nisso, inclui-se, sempre, a crítica, a sátira, a piada, a caçoada. Mas porque o homem é sempre um místico e no vórtice da guerra e nos momentos sociais agudos não perde contato com a ideia de Deus, entendeu continuamente que a arma – mesmo quando temperada com a ironia, o sarcasmo, a xingação – torna-se mais contundente, poderosa, se revestida, fortificada pela ação divinal. Daí, as bênçãos, as rezas.
No Brasil, fórmulas folclóricas
Servindo-se da conhecida e brilhante verve do compositor popular que exibe e desafoga em rimas que proporcionam verdadeiros combates entre cantadores violeiros, o espírito brasileiro adotou, para muitas manifestações, a paródia versificada de orações. Com ela produziu a crítica política e a sátira, como quem perfuma com odor de incenso a unhadela que aplica no brio do adversário político no homem público que angariou antipatias.
Vejamos, como exemplo, a quintilha seguinte que o folclorista Pedro Batista afirma ter sido corrente no Estado da Paraíba e que se referia, com mais crueza de propósitos à região dos Afogados. A cantoria, em causa, é bem mais longa e todas as quintilhas terminam com o refrão “Libera nos Domine” (Livrai-nos, Senhor), sendo que a pronúncia popular alterou o Domine em Dominé não só por inclinação mas também por imposição da rima. O refrão também servia de título geral:

De homens mal encarados,
De partos atravessados,
De passar em Afogados
Quando está cheia a maré
LIBERA NOS DOMINÉ.

Para uso guerreiro, propondo-se a levantar o ânimo dos combatentes farropilhas e caçoar dos seus inimigos, os “caramurus” ou imperiais, os soldados gaúchos da República de Piratini, gostavam de cantar um “pelo sinal” que veio a ser recolhido pelo folclorista  J. Simões Neto (Cancioneiro Guasca). Não é necessária explicação para que se possa acompanhar e entender o entusiasmo e a mensagem deste “pelo sinal farroupilha”, figurante no livro de Simões sob o nome de “Persignação”:

Tristes tempos mal fadados
Muna vistas maravilhas,
Distinguem-se os Farroupilhas
PELO SINAL

De pistola e de punhal
A vaga, raivosa gente,
Assola o continente
DA SANTA CRUZ

Chamam-nos caramurus
Nos ameaçam de saque
Mas de semelhante ataque
LIVRE-NOS DEUS

As leis andam em boleios,
O povo, tremendo, foge.
Bento Gonçalves é hoje
NOSSO SENHOR

Os que furtaram sem pudor
Espancam os seus patrícios
Chamam-nos sem artifícios
DOS NOSSOS

Os que temendo alvoroços
Querem viver retirados
São logo apelidados
INIMIGOS

Dizem ainda tais amigos,
Que há de Caldas governar,
Que a lei se há de ditar
EM NOME DO PADRE

No entanto anda o compadre
Do compadre dividido
Foge a esposa do marido
E DO FILHO

Grande Deus! Eu me humilho
Ante vossa divindade
Mandai-nos a caridade
DO ESPÍRITO SANTO

Enxugai o nosso pranto,
Acalmai a nossa discórdia;
Por  Vossa misericórdia!
Amém, Jesus!

Os “credos”, as “invocações”, as “ladainhas” seguem a mesma linha de inspiração reunindo o sacro ao profano, o divino ao humano, a promessa de paz aos propósitos de guerrear ou pelo menos, no mínimo, de aborrecer o objeto das sátiras e brincadeiras. Mas, também, para muita louvação séria, piedosa.
Quano a isso, vejamos, para exemplificar, uma espécie de ladainha constante do cancioneiro dedicado ao Padre Cícero Romão Batista, o famosíssimo Padim Ciço, de Juazeiro, Ceará:

É pastor dedicado,
É a nossa proteção,
É a salvação das almas
É Pade Ciço Romão,
Da Santa Religião!

É dono do Horto Santo,
É dono da Santa Sé,
É uma das Três Pessoas,
É filho de São José.

Assim, os velhos cantadores, compositores e repentistas punham a adesão política, o talento criador e a devoção religiosa a serviço de um chefe, de uma causa, de uma ideia. E enriqueceram de fórmulas ricas de curiosidade e de clara disciplina estética e espiritual o acervo do folclore brasileiro.

♦♦♦

NOTA: No Nordeste, principalmente no Ceará, são muito populares os “Padre-Nossos” e as “Salve-Rainhas” da cachaça.


NOSSA LÍNGUA
Se coçar Ameaçar tirar o revólver da cartucheira ou da cintura, com fins agressivos, segundo Edilberto Trigueiros em A língua e o folclore da bacia do São Francisco.

Um comentário:

  1. Na minha recente viagem a Porto Alegre consegui adquirir um exemplar do livro CANCIONEIRO GUASCA, de Simões Lopes Neto. Uma raridade! A edição é de 1952, pela antiga Editora Globo do Rio Grande do Sul (não confundir com a atual,ligada a Rede Globo).
    Nesse livro aparecem PAI NOSSOS, AVE-MARIAS, PELO-SINAL e outras formas poéticas também praticadas no Nordeste, principalmente por Leandro Gomes de Barros

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