sábado, 5 de novembro de 2011

CRÔNICA


LOSMUNDO MARRA


Augusto Cesar Magalhães Pinto*
No início dos anos 80, quando regressei de modo definitivo a Canindé para assumir o emprego do Banco do Brasil, a cidade era bem diferente do que é hoje. O número de carros talvez não chegasse  a 10 por cento dos atuais e as motos podiam ser contadas  nos dedos. A título de exemplo, o bairro Santa Luzia, hoje completamente tomado por casas chamava-se  ainda Fazenda Itaporanga   e era local de caça para alguns e outros extraiam lenha e/ou fabricavam carvão. Não sou do tipo que gosta de remoer o passado em que o saudosismo é engolido por mágoa, revolta ou tolas comparações de que “no meu tempo era assim”, com um certo ar de superioridade. O meu tempo era aquele é o mesmo de hoje e será o amanhã, pelo menos enquanto   vida eu tiver.
Evidentemente que é muito bom recordar dos bons momentos cujas lembranças afagam a alma e arejam a própria existência.  Gosto de lembrar que nos finais  de tardes  ao sair do Banco ia sempre na Casa Marreiro, onde o Laurismundo esbanjava sua irreverência ao passo que se consolidava como líder de uma turma que ali comparecia  diariamente. Ele que levara a vida toda como professor e ainda exercia a profissão, estendia seu mister nos momentos de folga, dando lições de vivência  contando do período que morou  em Minas Gerais, no Rio de Janeiro, de quando serviu como soldado da aeronáutica, além de falar da sua infância e adolescência em Canindé. Como grande gozador, sempre potencializava os casos mais jocosos, mesmo aqueles em que ele ficara em desvantagem, seu espírito superior permitia largamente a auto-gozação.
Na juventude foi um atleta, adorava vôlei, natação e praticou jiu-jitsu. Por várias vezes falou de uma luta entre ele e um membro de um circo aqui chegou na década de 50. Uma renhida luta em pleno picadeiro em que ele venceu de cara os dois primeiros round’s  e no terceiro, enquanto se articulava para dar um golpe definitivo no algoz, seus amigos supuseram que ele se achava em desvantagem e foram em seu socorro.
Naquela época por falta de outros atrativos (nem se falava em televisão e raros eram os que podiam possuir um rádio) os interiores eram infestados por espetáculos mambembes. Era um circo paupérrimo, coberto e envolvido por lona surrada e ao que parece o palhaço era tido como “imoral” para os padrões sociais vigentes, talvez extremamente inocente comparado aos atuais.
Como a cidade era minúscula tínhamos uma vigilância muito acentuada da Igreja Católica que, de certa forma, alertava a comunidade evocando a prática dos bons costumes.  Prova disso é que o Circo foi assunto do jornal  Santuário de São Francisco de n º 950, ano 41, datado de 15 de agosto de 1955, na forma que se segue: “No Circo Teatro União que visitou Canindé em princípios de agosto, deram-se diversos desastres, devido alguns a imprevidência do seu pessoal. Uma cerca levianamente eletrificada para impedir a entrada de paraquedistas, ocasionou perigoso choque de um operário do mesmo circo. Numa luta de Jiu-Jitsu entre um jogador do circo e um da cidade, os ânimos se agitaram havendo violência entre os torcedores. E finalmente o palhaço em diversos programas escorregou do terreno do bom humor para os ditos dúbios”.
Como se vê, o irreverente Laurismundo foi notícia no Santuário ainda que de maneira velada. Acho que nem mesmo ele sabia e se soube também nunca me falou, o certo é que “Losmundo Marra” existiu, lutou e foi notícia.
Informações colhidas junto aos irmãos Tonico e Natan Marreiro, dão o exato relato da história: Laurismundo, até pouco mais de um mês, era soldado da Base Aérea de Fortaleza e nas horas vagas atuava como professor de Inglês e Educação Física no Colégio Arminda Araújo que ainda hoje existe com o nome de Franklin Roosvelt.  Apesar da estatura pouco avantajada era muito forte, e se enquadrava no tipo que a juventude hoje chama de “sarado”; ademais, treinava Jiu-Jitsu quase que diariamente.
Tendo dado baixa na vida militar, voltou a Canindé com o intuito de dedicar-se ao magistério, justamente na época em o circo aqui aportou. A pequena companhia circense, apesar do nome pomposo - Circo Teatro Escola - era na verdade mais conhecido como Circo do Pereirinha.  Era dotada de um número muito limitado de membros e eles em conjunto faziam de tudo, atuavam desde a montagem do espaço físico e eram os próprios artistas do espetáculo. Havia entre eles um camarada que logo na montagem do circo impressionou a todos pela aparência robusta, compatível com a força física que demonstrou no serviço pesado fincando estacas de ferro a toque de marreta e carregando madeira às costas para montar a arena. Chamava-se Zacarias e no espetáculo demonstrava destreza apresentando-se como trapezista  sem nenhuma rede de proteção.
O circo era montado em frente ao Mercado Público, no exato local em que hoje se acha a Praça Tomaz Barbosa.  Entre as atrações diárias o trapezista Zacarias simulava  luta com um membro do circo, que em rodízio, apanhavam do “astro”.  A Partir do segundo dia Zacarias passou a desafiar a qualquer um da cidade que quisesse lutar com ele, marcando logo a luta para o espetáculo seguinte. Na verdade tratava-se de um estratégia, presumivelmente utilizada onde eles passavam, para encher a casa. Não aparecia ninguém disposto a enfrentar a fera, até que um grupo de amigos do Laurismundo fizeram de tudo para convencê-lo a participar da luta, afinal, todos se sentiam desmoralizados e somente ele, apesar da visível desvantagem física pelo tamanho de Zacarias, poderia lavar a honra da juventude canindeense,  fazendo uso de técnicas de luta.
Laurismundo de princípio relutou, mas acabou cedendo pelo sentimento bairrista, afinal Zacarias teria dito que em Canindé não tinha homem para enfrentá-lo. Tudo isso sob os protestos do seu genitor, Seu Raimundo Marreiro, cujo espírito poeta, o mantinha arredio a qualquer disputa violenta. Naquela noite em pleno picadeiro aceitou o desafio e a luta foi marcada para o dia seguinte às 20:00h.
Na hora marcada entraram no ringue mal acabado, sob o anúncio do apresentador, o invencível “ Zacarias”, que foi freneticamente vaiado pela juventude local  e o desafiante “ Losmundo Marra” (foi a maneira que ele consegui para enfeitar o nome do Laurismundo) que foi ovacionado pelos torcedores.
Foi anunciado o início da luta e Zacarias, visivelmente maior pelo menos um palmo, do alto fitou o adversário  com a mesma  empáfia com que Golias olhou para Davi na batalha entre Filisteus e Israelitas  e partiu para o ataque pesado. O desafiante mostrou destreza e num certeiro golpe dominou o gigante. Partiram para o segundo round e mais uma vez o resultado se repetiu, inobstante a força descomunal do circense.  No terceiro round  Zacarias usou de uma terrível artimanha que impediu o adversário  de dominá-lo. Segundo o Natan, ele impregnou todo seu corpo de um óleo e o Laurismundo não conseguia agarrá-lo, pois este “ensebado” escapava dos golpes que em vão lhe eram aplicados. Houve um momento em que o Laurismundo escorregou e o adversário caiu por cima dele sufocando-o com a barriga. A plateia ficou atônita e silenciosa. O Natan e o Marreirinho tinham montado uma estratégia para salvar o irmão caso ele estivesse em desvantagem: cada um armado de baladeira e pedras, criteriosamente selecionadas no leito seco do rio Canindé, atiraria na cabeça do adversário. Quando eles se preparavam para o socorro,  enquadrando o agressor na linha de tiro, a plateia enfurecida invadiu a arena, tendo à frente o Ribamar Cordeiro, que puxou uma faca, soltou um grito de guerra e partiu para Zacarias que em pânico saltou o ringue e emendou carreira para longe do circo. Enquanto isso “Losmundo Marra” era carregado como herói nos braços do povo por ter lavado a honra dos seus conterrâneos, mostrando que Canindé era  terra de cabra macho. Naquele momento ele dava por encerrada sua carreira de lutador no ringue, todavia, até um final dos seus dias terrenos foi um lutador em prol da educação e da cultura de sua terra, mas aí já é outra história.

*Autor dos livros: Viagem pela história de Canindé e Histórias de nossa terra e de nossa gente.


3 comentários:

  1. Parabéns ao César pela crônica. Laurismundo é uma figura que teve um papel muito importante na vida cultural de Canindé nas décadas de 1980/90. Com a sua valiosa ajuda participamos dos Salões de Humor de Teresina-PI e Campina Grande-PB (viagens muito pitorescas, por sinal) e a realização de concursos de poesia e humor gráfico em Canindé. Losmundo Marra, posteriormente rebatizado de Velhote Sapeca, foi um personagem ímpar na história de Canindé.

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  2. Laurismundo deixou a todos que o rodearam nos bons tempos da Casa Marreiro, exemplo de desprendimento, de competência,como professor,comerciante, cidadão, pai, amigo e irmão. Hoje ainda não surgiu no cenário canindeense um mecenas, agitador cultural que superasse seus atos e ditos, para alguns, ainda tão significativos, tanto quanto o episódio de sua juventude narrado exemplarmente, com pesquisa histórica, pelo cronista César. Resta perguntar o que houve com a placa que constava na singela rua que imortalizou seu nome.

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  3. Só posso mesmo é confirmar tudo o que já foi dito nos comentários anteriores sobre o Laurismundo, que o conheci nos meus tempos de Ginásio. O Láuris aglutinou em torno de sua pessoa uma turma bacana de amigos e seus admiradores. Ele era uma espécie de guru pra gente: Silvio Roberto, Arievaldo, Maurício Cardoso, Lopes, Jota Batista, Gonzaga Vieira, Itami de Morais... Ele marcou profundamente uma época. Parabéns ao Cesar pela crônica inspirada.

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