sexta-feira, 2 de setembro de 2011

cantoria


Amor, saudade e sertão são temas bastante recorrentes nas cantorias de viola. Mesmo com a diversificação temática da cantoria e sua urbanização nos tempos atuais, muitos violeiros ainda se voltam apaixonadamente para o tema amor e os sentimentos que dele derivam. Duplas de cantadores sofisticados, como os Nonatos, continuam emplacando sucessos quando o assunto é uma paixão incurável, um amor perdido ou inacessível. Recolhemos do livro Quadra, Quadrado, Quadrão, de Wanderley Pereira, estas décimas de uma cantoria travada entres os cantadores Azulão e Serrador, sobre o mote A medicina não cura / As mágoas de um coração:

CANTORIA EM INGAZEIRA

Azulão:
Na terra curou Jesus
Febre, gripe e garrotia,
Sarampo e disenteria,
Gente tomada por pus.
Depois que morreu na cru
Foi que chegou no sertão
Curador de profissão
Que o povo inteiro procura:
A medicina não cura
As mágoas de um coração.

Serrador:
Tem a tal de medicina
Com frasco e com injeção
Que cura qualquer cristão
No soro e penicilina.
O doutor sabe da sina
De quem sofre do pulmão
Perna, braço, punho e mão
Quebrando o doutor costura:
A medicina não cura
As mágoas de um coração.

Azulão:
Quanto mais doença o dono
Da farmácia é quem mais vende,
Mas o doutor não atende
O pobre no abandono.
Dá remédio pra ter sono,
Coragem e disposição,
Contra o mal da congestão,
Lombriga, enfado e tontura:
A medicina não cura
As mágoas de um coração.

Serrador:
Cura o homem do cansaço,
Cura a mulher do aborto,
Velho que tem olho torto,
Menino que quebra o braço.
Cura dor no espinhaço,
Beiga e amarelão,
Papera e baixa pressão,
Esquecimento e loucura:
A medicina não cura
As mágoas de um coração.

Azulão:
Tem xarope pra menina
Apressar seu crescimento
E tem até tratamento
Pra homem da fala fina.
Pra velha que não combina
Com moço tem injeção;
Velho faz operação
E vira o diabo em pintura:
A medicina não cura
As mágoas de um coração.

Serrador:
Se a velhice chegar
Numa mulher, de repente,
Tem o doutor competente
Para outra cara lhe dar:
Tira o queixo do lugar,
Na testa faz lixação,
Dá novo jeito à visão
E faz outra dentadura:
A medicina não cura
As mágoas de um coração.

Azulão:
Para quem sofre na vida
A perda dum grande amor
Não há no mundo um doutor
Que cure a grande ferida.
Também quem sofre a partida
Do seu querido sertão,
Tem nessa separação
A sua eterna amargura:
A medicina não cura
As mágoas de um coração.

Serrador:
Eu que deixei minha terra
Em busca doutra cidade,
De lá só sinto é saudade,
Até do vento da serra.
Aqui bezerro não berra,
Falta vaqueiro e gibão,
Não tem cavalo alazão,
Nem feijão com rapadura:
A medicina não cura
As mágoas de um coração.

Azulão:
Quem nasce na Ingazeira
E dentro dela se cria,
Partindo dela, algum dia,
Adoece a vida inteira.
Os banhos de cachoeira
E corridas de mourão
São a melhor injeção
Para qualquer criatura:
A medicina não cura
As mágoas de um coração.

Um comentário:

  1. O poeta e folclorista Wanderley Pereira deu prova "monarca" de seu talento em duas obras magistrais - Quadra, quadrado e quadrão e "De repente Cantoria", em parceria com o menestrel Geraldo Amancio, com quem fez outros livros interessantes, como o "Cantigas que vem da terra". Sempre gostei mais do Wanderley poeta que do jornalista, apesar de saber que ele é grande também nessa outra profissão. Pedro Paulo fez um ótimo resgate de versos que, acredito eu, foram escritos pelo próprio Wanderley e atribuídos a dois gigantes do repente - Serrador e Azulão. Um ponto curioso desse livro é quando ele une o poeta ao jornalista e busca manchetes metrificadas nos principais jornais do país. Pesquisa ímpar e original.

    ARIEVALDO VIANA

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