terça-feira, 30 de agosto de 2011

literatura

A ALEGORIA POÉTICA 

Maurício Cardoso*

Uma alegoria é uma narrativa ficcional, um diálogo ou uma cena a qual funciona em dois níveis paralelos de significação em sincronia no interior de um recorte temporal. Os personagens, a fala, a ação, o tempo e o espaço contribuem para um sentido coerente, mas há usualmente sinais patentes no texto de que o leitor precisa traduzir cada detalhe em sua narrativa de superfície para outra história igualmente coerente. Frequentemente, esses sinais fornecem também um tipo de código implícito que prescreve a forma com que devemos transpor cada detalhe para uma história paralela.
Para Abrams só há dois tipos de alegoria: a histórica, ou política, que requer uma leitura da narrativa de superfície como uma versão transposta de personagens e eventos históricos ou políticos; e a alegoria de idéias, na qual os personagens literais representam conceitos abstratos e o enredo deve espelhar uma doutrina ou tese.
O poema de Christina Rossetti, Up-Hill (que traduziremos como Montanha Acima), é um exemplo refinado de uma alegoria espiritual na forma de um diálogo entre um enunciador e seu interlocutor não-identificado. Após o texto original, segue uma tradução nossa: 

UP-HILL


Does the road wind up-hill all the way?
Yes, to the very end.
Will the day’s journey take the whole long day?
From morn to night, my friend.

But is there for the night a resting-place?
A roof for when the slow dark hours begin.
May not the darkness hide it from my face?
You cannot miss that inn. 

Shall I meet other wayfarers at night?
Those who have gone before.
Then must I knock, or call when just in sight?
They will not keep you standing at that door.

Shall I find comfort, travel-sore and weak?
Of labour you shall find the sum.
Will there be beds for me and all who seek?
Yea, beds for all who come.

Tradução:

MONTANHA ACIMA

Esta estrada segue montanha acima o percurso todo?
Sim, até o finalzinho. 
A jornada levará um dia inteiro?
Do amanhecer até a noite, meu amigo. 

Mas para a noite há um lugar de descanso?
Um teto para quando as lentas horas de escuro se iniciam.
A escuridão não o esconderá de minha visão?
Impossível não enxergar aquela estalagem.

Poderei encontrar outros caminhantes ao anoitecer?
Todos os que partiram à frente. 
Devo bater à porta, ou chamar quando à vista?
Eles não o deixarão a espera.

Encontrarei conforto, as dores da viagem e fraqueza? 
Encontrarás a recompensa do trabalho. 
Haverá camas para mim e para os que necessitarem? 
Sim, camas para todos que chegarem. 

Superficialmente, este diálogo consiste de uma enunciadora poetisa indagando acerca de uma jornada a qual ela contempla, ou está prestes a fazer. Como tal, cada detalhe invoca um sentido objetivo, literal, e a totalidade estabelece sentido para o que soa como uma troca casual de informação entre um viajante potencial e alguém que conhece o caminho. Ainda assim, há pistas que ao longo do poema que nos guiam a lê-lo como uma alegoria religiosa acerca da jornada da vida para a morte. Tais pistas incluem o fato de que a jornada é montanha acima e o percurso completo leva um dia inteiro, o que invoca noções de valor cristãs. A jornada começa ao alvorecer e termina ao anoitecer (invocando, assim, associações culturais gerais entre as partes do dia e os períodos da vida). O final da jornada trará um fim ao trabalho em um lugar de descanso, o qual será impossível não encontrar e no qual terá leitos para todos que chegarem. 

O poema em análise é considerado uma alegoria porque os dois significados correm proximamente em paralelo; cada detalhe de superfície pode ser transferido para o seu significado correspondente, e o segundo significado não é meramente sugestivo ou de uma compreensão aberta, mas contundentemente preciso. Embora as jornadas possam ser usadas metafórica ou simbolicamente, o fato é que o poema limita os significados possíveis para a correspondência de um para um entre jornada real e jornada implícita que nos permite classificá-lo como alegórico. 

*O autor é professor universitário.





3 comentários:

  1. Christina Georgina Rossetti (Londres, 5 de dezembro de 1830 — Londres, 29 de dezembro de 1894) foi uma poetisa inglesa de origem italiana, irmã do pintor Dante Gabriel Rossetti, William Michael Rossetti e Maria Francesca Rossetti.Seu pai, Gabriele Rossetti, era um poeta italiano e refugiado político do Reino das Duas Sicílias, sua mãe, Frances Polidori, era irmã de John William Polidori, amigo e médico de Byron.

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  2. Em poucas mas densas palavras, o professor Maurício Cardoso explicou o significado da poesia alegórica. É preciso muita atenção para captar todos os detalhes da explicação, tal a multiplicidade de sentidos que cada palavra evoca. Da mesma forma, para compreender o sentido oculto (alegórico) do poema, é preciso fazer as devidas comparações entre as imagens que as palavras representam. Foram muitos os poetas que escreveram alegorias poéticas de sentido espiritual. A lista é longa: Goethe, o maior poeta de língua alemã (Maurício me falou dele há poucos dias), Yeats, Shelley, Fernando Pessoa...Quero crer que Cecília Meireles também.
    A Bíblia é repleta de alegorias, em todos os seus livros. O filósofo holandês Baruch Spinoza, de origem judia, chamou a atenção para esse fato, e tinha provas abundantes dessa verdade. O notável gênio italiano Pico de Mirândola, da época do Renascimento, dono de um saber filosófico e religioso estupendo, desvendou o sentido alegórico de diversas passagens da Bíblia nas suas Novecentas Teses apresentadas ainda na sua juventude ao mundo, chamando todos os sábios para discuti-las. Giordano Bruno foi outro filósofo que sabia o sentido de muitas alegorias da Bíblia. O Bhagavad Gita (A Canção da Senhor, ou A Sublime Canção), que constitui uma pequena parte do Mahabarata, a grande epopéia hindu, é uma alegoria poética (usando as imagens de uma enorme guerra fratricida ocorrida na Índia) da grande batalha travada entre o Eu Superior (a centelha divina, o espírito) de cada homem com o eu inferior, representado pelas paixões, tais como o apego, a luxúria, o ódio, a preguiça, o medo, a ganância, o egoísmo, a ignorância, o orgulho, a vaidade. Os antiquíssimos Vedas, escritos na forma de poemas, encerram uma alegoria só entendida pelos estudiosos da filosofia hindu, que são poucos.
    Parabéns pela exposição e pela tradução, Maurício. Continue escrevendo essas pérolas, nós precisamos delas para ver o mundo sob uma perspectiva mais bela.

    Flávio Henrique

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  3. Heliogábalo Apolodoro Sampaio30 de agosto de 2011 às 18:51

    Foi proveitosa a iniciativa do professor Maurício em dar acesso ao público deste blog a uma poesia refinada, através da sua tradução literal e análise dos versos da irmã do poeta e pintor Dante Gabriel Rossetti.

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