sexta-feira, 16 de agosto de 2013

crônica


A VILA E FREI TIMÓTEO

Pedro Paulo Paulino

Frei Timóteo na capela de Vila Campos

Vila Campos encerra hoje (17/8) as festividades do seu padroeiro S. Roque. O dia do santo, na verdade, é 16 de agosto. Faz algum tempo, os promotores desse evento acharam por bem tornar a data móvel, para acomodar o encerramento num sábado, ensejando a maior participação dos fiéis. O novenário  aconteceu mesmo numa atmosfera de muita festa. Começou numa noite de lua crescente e céu límpido, aclimatando mais o espírito bucólico do lugar. Vi passar nessas noites fileiras de pessoas sob o claro da lua, rumando para a capelinha.
Neste período do ano, a Vila ganha um colorido diferente. A maioria de suas casas veste nova pintura, a estrada de chão é reparada, as bodegas do lugar são mais abastecidas e muita gente começa a chegar para o ápice da festa. O motivo é justo. Uma vez por ano, parentes reencontram-se, abraçam-se e revivem muita coisa de suas vidas. De Fortaleza, uma vistosa caravana chega não só para louvar S. Roque, mas talvez principalmente rever os seus. São daqui os Paulino, os Secundino, os Viana, os Silva, que moram na Capital e em bom número. A festa, eles que fazem. Somos assim anfitriões de nós mesmos. No dia do encerramento da festa, tem missa, tem leilão, muita conversa alegre e de noite tem forró.
Eu, por mais que participe do acontecimento, só consigo ver a festa de S. Roque na Vila Campos com os olhos da minha infância. Era o maior evento deste mundo para mim. Todos preparavam um traje especial para o dia, e creio até que esse costume ainda permanece entre algumas pessoas. Era a roupa da festa. E nós meninos íamos à missa com nossa calça comprida e camisa também de mangas compridas. O número de fiéis na festa era notavelmente bem menos do que hoje, mas na minha memória ainda parece que era uma gigantesca multidão. Na igrejinha, próximo ao altar, viam-se as senhoras ajudantes da missa: D. Luzia, a catequista, a professora Elsa e minha professora Susana. Noutra ala, os homens, os patriarcas do povoado. No meio de todos, seu Pedro Silva destacava-se, tanto por ser mais comprido que o geral quanto pela boa voz entoando as cantigas da missa.
Porém há em minha lembrança um personagem verdadeiramente marcante dessa época: o padre.
Frei Timóteo, por longo tempo foi o condutor espiritual destas almas. Não tinha comprovadamente o dom de cativar e orientar, mas era o padre. E todos o estimavam. Uns até o temiam. Devia ter uns sessenta anos. O rosto afogueado, o corpo volumoso e o jeitão de falar embaraçado não escondiam nele sua origem germânica. Era zangadiço e uma leve contração num canto da boca dava-lhe um riso sardônico permanente, que se tornava mais acentuado ainda com o olhar esquadrinhador. Na povoação jamais alguém o viu em outro vestuário afora a batina. No correr do ano, as missas na Vila aconteciam no último domingo do mês. Frei Timóteo chegava cedo da manhã, em seu jipe. Quando pisava o adro da capelinha, muitos aproximavam-se para lhe pedir a benção.
Ele transpunha a nave da igreja, parava e contemplava a imagem do orago. Em pouco tempo já estava sentado no confessionário, o cotovelo apoiado e a mão na testa, como pensativo. Uma porção de gente punha-se em torno e, devido à exiguidade do recinto e à pouca audição do ilustre reverendo, ficava-se inevitavelmente sabendo os pecados uns dos outros. A advertência parecia ser uma só para todos. Depois da confissão, cada penitente retirava-se para um canto da parede e, de joelhos, balbuciava alguma reza.
As missas do frei Timóteo eram sempre demoradas. Ele arrastava as palavras vagarosamente e cada divisão da liturgia tinha quase o tempo dobrado. Os mais cautos levavam já seu lenço para forrar os joelhos no momento da consagração. Ele impunha um silêncio quase absoluto e a mais leve desatenção fazia-o suspender a palavra. Pressionava os lábios com o indicador, e um prolongado silvo de reproche se escutava. Carregava consigo o silêncio do convento. A massa de pessoas concentradas no templo, portanto, mantinha uma cautela tácita e regimental. Dos sermões dele, creio que pouca gente guardava algum eco. Era uma pregação sem calor e opaca. Pelo meio da homilia, boa parte dos fiéis fatalmente cochilava. A povoação inteira tinha-lhe, contudo, grande veneração. Finda a missa, o banquete especial do padre e a rede branca estendida no alpendre já o esperavam na casa da tia Bela.
Foi ele em sua época o ministro dos muitos sacramentos para essa gente. Uma geração hoje de adultos recebeu o batismo, a comunhão e a crisma das mãos e da boca do frei Timóteo. Eu, inclusive. Outros tantos, o sacramento do matrimônio. Nos rituais de casamento, até conta-se dele o que talvez seja anedota. Na clássica entrevista aos noivos, quando perguntava: “Vós que seguis o caminho do Matrimônio, estais decididos a amar-vos e a respeitar-vos, ao longo de toda a vossa vida?”, e os nubentes respondiam: “Sim”, frei Timóteo comentava, resmungando: “Duvido muito”.
Frei Timóteo foi uma legenda da festa de S. Roque dos tempos há pouco idos. O evento agora encorpou-se, cresceu e segue ritmo novo. Mesmo assim, no reencontro familiar, nas novenas, no leilão, nos apertos de mão efusivos e em tudo resiste o bucolismo provinciano e, no povo,  a crença simples e duradoura em mim tão cedo extinta.

4 comentários:

  1. Poeta, é possível ver com lirismo as tradições populares, e assinaria o fecho de sua crônica.

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  2. Com esta crônica tão romântica e ao mesmo tempo escrita com tamanho rigor gramatical e fluência, mostrando um quadro vivo e eloquente da visão de uma criança dotada de um poder notável de observação, enfim, toda essa forma poética de descrever o antigo pároco da Vila Campos, só tenho que agradecer ao Pedro Paulo por esse mergulho saudável no passado, essencial para se viver o presente de uma maneira mais completa, resgatando as imagens de uma criança que precisa ser revivida em todos nós, todos os dias.

    Flávio Henrique

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  3. Quando criança eu frequentava as festas de santo não propriamente movido pela fé, mas pela curiosidade infantil de menino sertanejo que gosta de ver ajuntamentos de pessoas, camelôs vendendo miçangas, leilões animados, toques de fole, conversas pitorescas ao pé do balcão. Foi assim nas Santas Missões de Dom Rufino, em São José da Macaóca, foi assim nos festejos de São Roque, na Vila Campos, era assim na Festa de São Francisco, em Canindé, evento que marcou profundamente a minha infancia, pois era ali que eu e minha avó Alzira adquiríamos os tão cobiçados folhetos de Literatura de Cordel.
    Outra coisa que me deixou saudade eram os brinquedinhos daquele tempo... lúdicos, artesanais, fabricados na periferia das cidades: caminhãozinho de madeira, joão-teimoso, joão galamarte, aquele burrinho (ou vaquiha) que se mexe em cima de um barril quando apertado por baixo e um brinquedo muito do safado que não me era permitido adquirir - um caixãozinho de defunto com um esqueleto tarado no seu interior. Alguem lembra disso? Quando a pessoa abria era aquela surpresa: o esqueleto estava "armado" tal e qual o defunto da música "Romance de uma caveira". Gostava de observar também as bancas de jogo, aquele jogo dos preás que entravam em determinadas tocas, aquele das argolas que laçavam carteiras de cigarros com cédulas de diversos valores. Tudo isso me remete diretamente aos festejos religiosos que observei na infância e que hoje, nem de longe, conseguem repetir a mesma emoção que eu sentia quando menino.

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  4. Grande Frei Timóteo. Ele era dotado de um humor refinado e por ser muito sério, tudo que ele dizia ficava mais engraçado. Presenciei um casamento na antiga capela da Casa dos Milagres em que ele disse ao noivo:- Repita comigo - Eu, fulano de tal, te recebo por minha esposa... O noivo em plena concentração de olhos fixos no frade, repetia suas palavras. Nesse instante, Frei Tomóteio interrompeu a sequencia de palavras e disse ao noivo: Diga estas palavras olhando pra noiva, voce está casando é com ela e não comigo... Todos riram abafados, até frei Timóteio sorriu quase imperceptível, somente o noivo fcou mais perdido do que cego em tiroteio.
    Afora essas excentricidades era um sacerdote muito virtuoso e extremamente caridoso.

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