O LIVRO DE CRÔNICA DE
RAYMUNDO SILVEIRA
Pedro Paulo Paulino
Creio que foi o escritor argentino Jorge Luis Borges quem afirmou que, a certa altura da vida, estava mais relendo que lendo. Essa opção um tanto estacionária parece também ter-me contagiado. Faz tempo que apenas releio. Mas não escondo que eu andava mesmo à cata de um novo livro, algo diferente, um autor desconhecido, pelo menos para mim. Essa minha busca foi interrompida no dado momento em que recebi das mãos de uma amiga um ótimo presente: o livro “Louca uma ova”, do escritor sobralense Raymundo Silveira.
Reunindo 29 crônicas, o volume é desses que se lê duma sentada. A naturalidade do estilo e o matiz de assuntos trabalhados vão puxando o leitor automaticamente página por página. Aliás, lê-se o livro de Raymundo Silveira independente da ordem do índice. Abre-se em qualquer fólio, e lá temos uma ótima crônica. O fôlego com que foi escrito provoca também no leitor aquela euforia própria da inspiração. Para começar, seu livro foi premiado no concurso “Prêmio Literário para Autores Cearenses” promovido pela SECULT-CE em 2010. Raymundo Silveira é da SOBRAMES, a Sociedade Brasileira de Médicos Escritores.
Com trabalhos traduzidos em várias línguas, o escritor sobralense já tem assento firme nas letras cearenses e nacional. Homem, como se diz, lido e viajado, suas crônicas têm como base justamente sua farta cultura de livros e viagens. Por isso, com muita habilidade remete ele cenas vistas no Velho Mundo aos livros de sua predileção. E com a mesma habilidade, faz ele também o inverso.
Afora tudo isso, encontra-se em seu estilo próprio, o gosto puramente literário da escrita caprichada, da palavra pronta no lugar certo, a elegância da sintaxe, o requinte do pensamento e o vocabulário agradibilíssimo. Há em sua leitura odor e som, o singelo e o épico, o sagrado e o profano. Fatos da sua vida de médico são narrados com um humor formidável, com intercalação de períodos tão harmoniosos como as próprias articulações do corpo humano. Memórias da sua infância, do seminário, dos primeiros amores, resgatadas sem o menor pejo e pieguismo. Tudo muito franco. Lembranças de suas excursões pelo mundo foram trazidas por ele como despojos preciosos dessas viages. E são narradas com a mais explícita boa-fé. “Paris nem sempre é uma festa”, “Essa essa é do Eça” são crônicas de viagem simplesmente impagáveis. Pessoas, fatos, aspectos, impressões, o mundo enfim visto por um cronista de conceitos conclusivos. E cada crônica é fragorosamente fechada com nada mais que uma frase ou duas palavras certeiras. “Enteado de Deus, nasci-me. Ninguém me pariu. Só não encontrei minha mãe porque, em realidade, ela nunca foi. Todavia, me lembro mais dela e sinto mais saudades do que se ela tivesse sido…” Com esse período cheio de originalidade, Raymundo Silveira fecha seu livro de crônicas.
Já falei aqui da minha inércia para ler coisas novas. O único livro novo que li nestes dias, repito, foi este de Raymundo Silveira. E já vou voltar às minhas releituras, começando por ele.
PPP,
ResponderExcluireu ainda não conhecia o seu blog. Muito legal.
Vou por um link no preferidos do Mundo Cordel.
Um abraço.
Estive em situação idêntica ao receber o livro de Raymundo Silveira, confesso que achei se tratar de mais um livro editado por quem pode, apenas pela vaidade de ver o nome estampado na capa. Que nada. Comecei logo pela que considero melhor crônica do livro: TEM ESPARADRAPO? Ora, sem dúvida, o tour de force de todo cronista é escrever uma só diálogos. Mas o tema, das diferença do português brasileiro para o lusitano é que o de fato me cativou. Por sinal havia sabido de um caso similar em que uma pessoa muito querida esteve em Portugal e relatou experiência semântica da mesma natureza, o que me proporcionou uma visão bem "realista" da anedota. Agora terminar a pendenga em inglês foi o melhor. REISADO lembrou experiências pessoais com uma tradição que muito me divertia: "Pai, me dê cinquenta mil reis! "Quarenta, menino? Pra que tu quer trinta se tu num gasta nem vinte? Toma dez, dá cinco pra tua mãe, compra um maço de cigarro e não te esquece de me entregar o troco. Olha lá!" Se se pode dizer mais alguma coisa sobre a arte de Raymundo Sobreira é que é Literatura autêntica, e a maioria do que temos visto sair do prelo, é alguma variante de redação escolar. E olhe lá.
ResponderExcluir"Afora tudo isso, encontra-se em seu estilo próprio o gosto puramente literário da escrita caprichada, da palavra pronta no lugar certo, a elegância da sintaxe, o requinte do pensamento e o vocabulário agradibilíssimo."
ResponderExcluirMuito bem descrito! Estas palavras fazem tocar em ressonância as cordas da alma de quem se extasia com a beleza das palavras e as saboreia como a um néctar delicioso ao paladar. Se a descrição é assim, que dirá a obra comentada.
Não conheço o livro e confesso que não faz parte das minhas predileções, embora reconheça o seu valor, tal a sensibilidade com que o Pedro Paulo a descreveu, na sua linguagem fluente e repleta das mais variadas impressões, o que demonstra o seu talento não só como conhecedor da literatura, mas também como bom leitor que sabe apreciar o belo.
De fato, reler obras há muito tempo lidas solidifica o conhecimento e nos revela nuanças despercebidas na primeira leitura, que só agora são vistas à luz da experiência adquirida com outras leituras e com o aprendizado na escola da vida. Afinal, poucas obras bem lidas valem mais do que muitas lidas superficialmente.
Flávio Henrique