domingo, 15 de maio de 2011

PERSONAGEM


DE QUEM SE TRATA


É inevitável alguém passar por ele sem ser atraído pela prosa divertida, animada pela eloqüência e a gesticulação de legítimo orador. Melodiosa como a fala dos ciganos, sua palavra tem a cadência adequada para as exaltações do espírito. A garganta é uma cachoeira vomitando conversa – como o rio Cangati vomita suas águas nos grandes invernos. Observador das coisas da natureza e do comportamento das pessoas, onde ele se encontra é impossível não ser notado.
Zé Freire é um espetáculo. Dono de sabedoria pura, jamais 'esquentou' banco de escola, o que lhe dá mais garantia na maneira de enxergar o mundo, tornando-o um dos sertanejos mais ‘cabra da peste’. Desde muito jovem mostrou inteligência esmerada, rapidez de raciocínio, palavra fácil e o dom de alegrar, convivendo com roceiros e vaqueiros na fazenda Buriti, sertões de Canindé, onde nasceu nos idos de trinta.
Na sua mocidade trabalhou na roça, mas foi como veterinário prático que mais se firmou, especializando-se na técnica de arrancar chifres. Afirma ter viajado por 26 estados do Brasil exercendo a profissão, principalmente nos estados do Maranhão, Pará, Goiás e Mato Grosso, onde conheceu grandes fazendas, fama, dinheiro e mulheres, muitas mulheres.
 Mesmo não sendo um seguidor de Maomé, garante ter espalhado 74 descendentes e convivido com 64 parceiras, das quais hoje em dia quer distância. Na filosofia dele, Deus fez o homem para continuar a obra da Criação, melhorar o mundo, praticar o bem, promover a paz, espalhar o amor e a união; e o Diabo fez a mulher para distrair o homem do seu ofício. De modo que o Diabo sai ganhando porque investiu na indústria do entretenimento.
Zé Freire também é creditado como profeta das coisas do sertão, em especial das previsões invernosas, estando neste caso muitas vezes à frente da Funceme e outros institutos do gênero. Previu com exatidão, por exemplo, a seca de 83, durante a qual jura de pé junto ter salvo vinte cabeças de gado, exclusivamente com água de coco.
Diz-se vidente e católico praticante, conduz a imagem de frei Galvão e uma forte oração para espantar olho gordo. É repentista, curandeiro e conselheiro de todos que o procuram atrás de orientação em casos de amor mal resolvido, abandono do lar, vício da embriaguez, mau vizinho, menino com tosse e lombriga etc. Zeloso com a honra própria e alheia, é um guardião da moral e dos bons costumes e ostenta com orgulho a graça de nunca ter ‘pisado na porta duma delegacia’.
É diligente com o visual e zela um respeitável bigode torcido cujas extremidades se alinham com as abas largas do chapéu.
Não venera Baco e tem um físico desempenado que nega os seus 80 anos. De ordinário calça botas de vaqueiro, traja calça de brim e camisa por fora. Galanteador, mas sem faltar com o respeito, sabe admirar o que há de bom nas mulheres, e condenar, com grande conhecimento de causa, o resto.
Dotado de memória fotográfica, é capaz de decorar folhetos de cordel, apenas por ouvir ler. Sente um 'espinho na alma' por não ter tido oportunidade de estudar, de vez que, além de não haver em sua época as facilidades de hoje, desde menino tem trabalhado mais 'do que jumento fazendo açude'. É um caráter sertanejo resistente e gozador, que veio a este mundo sabendo conviver com os embates, com os reveses do clima e as agruras da terra, tirando proveito dessas situações para narrar lances fantásticos de sua vida, que ele conta com muito desembaraço.
Vez por outra, é convidado para programas de rádio das emissoras do interior, nos quais é entrevistado acerca de tudo. Suas história de vida, aventuras amorosas rendendo aos seus pés os corações mais empedernidos, travessias Brasil afora mochando boi nas grandes fazendas, desafiando a bravura de touro valente, topando a coragem de cabra macho, tudo isso já virou mote para os poetas populares que contam as narrativas de Zé Freire em folhetos de cordel.
Oralmente, seus feitos correm mundo. Os 'causos' contados por ele já estão no rol do anedotário sertanejo e são reproduzidos nas reuniões de amigos, no salão do bar, na esquina, na barbearia, nas bodegas do mato, enfim, em todo lugar onde habita o folclore.
Atento e analista de tudo, Zé Freire procura estar sintonizado com todos os fatos e acontecimentos do mundo, através do rádio e da televisão, bem como pela conversa no seu largo círculo de fãs, pois é comum, sempre que vem a cidade, vê-lo assediado por poetas, professores, médicos, advogados, pesquisadores etc.
Reside hoje numa pequena gleba, na localidade de Esperança, zona rural de Canindé, com um filho e a mulher que ele garante ser a última, pois sustenta há muito tempo uma campanha implacável contra o casamento, instituição que, no seu modo de pensar, nunca devia ter sido criada. Lembra com ênfase que “os homens mais importantes, como Jesus Cristo, Tiradentes, o papa, os santos, Bin Laden, Carneiro Portela nenhum casou!” E é capaz de jurar - também de pé junto - que o casamento é coisa do capiroto, haja vista que o diabo tem chifres.
Ainda sobre o matrimônio, Zé Freire gosta de repetir essa décima, de autoria do seu amigo o poeta Sebastião Ferreira:

“O homem que inventou
Esse tal de casamento
‘Tá do inferno pra dentro,
Do mundo se afugentou...
Eu não sei que fim levou
Esse fí dessa ou daquela;
Deve tá preso na cela,
Com fome, sem água e luz:
Quem casa arranja uma cruz
Pra viver pregado nela!”

Apesar dessa sua convicção, Zé Freire é um admirador incondicional  do universo feminino. A mulher, na avaliação dele, deve ter 17 sinais de beleza, entre os quais, “morena, desfatada (sem barriga), 1,75m de altura, o cabelo cobrindo as ancas, uma polegada do queixo para o pescoço, a boca pequena, a canela sentada sobre o calcanhar, o lacrimal dos olhos reluzente...”
Enfastiado de tanta poligamia, festejando sucessos e vencendo entreveros no território do amor, já estava para renunciar definitivamente aos convites do coração, quando encontrou aquela que, no seu entender, “é uma santa”. Ele mesmo a descreve:
– É uma mulherzinha carinhosa, obediente, magrinha... Depois que janta e calça as chinelas pesa 22 quilos. Pode forrar a cama dela com bolacha 'creme-craque', que ela dorme a noite todinha em cima e não quebra uma.
Como já foi dito, Zé Freire foi se refugiar sossegadamente na povoação de Esperança, na sombra dos serrotes Três Irmãos, longe do rebuliço da cidade, onde só vem a negócio ou para rever amigos e saber  das novas deste mundo.
O gosto pela 'vida de gado' está presente da mesma forma no seu dia a dia. E é com muita razão que como pequeno criador agora se sente estabelecido, cuidando do seu gadinho, da sua miunça e da propriedade, sob o calor da mulher Laninha e do Cidrak, o herdeiro caçula.
 Balançando-se na rede armada no alpendre, o chapéu debaixo junto às botas de couro, ele repete esta súplica em voz alta, as mãos erguidas para o céu: “Daqui pra frente, só peço que Deus me dê duas coisas: a saúde dum jumento novo e a potência dum touro swhit”. Na garagem, guarda a caminhonete F-4000 que ele aposentou depois da desencantada profissão de motorista de horário. Bem... mas esta história, e muitas outras, vêm sendo contadas aqui no blog.

3 comentários:

  1. Tá novinho, o diabo do véi... tinindo e ringindo, a moda saco de goma! Um de nossos folhetos, inspirado nos muitos casamentos de Zé Freire, é sucesso absoluto de vendas: O HOMEM QUE CASOU COM UMA SERPENTE.

    Eu já vi que o casamento
    É roleta viciada
    São poucos os que conseguem
    Uma ficha premiada
    Muitos vão pra enxovia
    Pois a grande maioria
    Se mete numa embrulhada

    Tanto faz ser na igreja
    No cartório ou no motel,
    Pro sujeito se enrascar
    Não precisa de papel
    Vou narrar o triste fado
    De um desafortunado
    Que casou com u'a cascavel.

    Quem conseguir mulher jovem
    Bonita e inteligente,
    Muito meiga e carinhosa
    Desprendida e paciente
    Fez então um grande arranjo
    Casou-se foi com um anjo
    Juro que não foi com gente...


    O nosso amigo Zé Freire
    Já me disse certa vez
    Que se casou sete vezes
    Do juiz era um freguês
    Viveu num vale de dores
    Agora escutem os senhores
    O que a sétima lhe fez.

    (...)

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  2. PPP,

    Esse Zé Freire é uma figura e tanto! Ainda mais quando mostrado pela sua pena, pelo seu talento para descrever.

    Uma belezura essa postagem!

    Parabéns!

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  3. Depois que descobri esse blog não passo um dia sem visitar o mesmo e os indicados pelo próprio,pois sempre tem alguma postagem interessante. Tinha que ser do PPP, parabéns.

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