sábado, 9 de abril de 2011

CRÔNICA


SERTÃO E INVERNO

Pedro Paulo Paulino


Quem viu de perto o cenário assustador do sertão ressequido, olhando-o do mesmo ângulo agora é capaz de jurar que houve uma transformação mágica na paisagem. De uma hora para outra, a grama verde se estendeu sobre a terra, os riachos se empanzinaram com os aguaceiros, os pássaros voltaram a cantar festivos e a natureza envolvente exibe um cartão-postal espetacular. Nos poços e córregos, palco da saparia, veem-se os montes de espuma branca deixados pelo sapo-boi, o tenor que, orgulhosamente, só se apresenta nos bons invernos.
Se o sertão está em festa, o sertanejo é quem mais comemora.
Numa dessas manhãs de inverno, tive o prazer de conversar com um sertanejo autêntico, já contando seus 70 anos, de gestos expressivos e cheio de bonomia. Fala quase cantando, sem dar pausa na conversa, entrecortando as palavras com um riso ingênuo que ajuda a realçar as rugas na face murcha, marcas do sol inclemente do sertão. Enquanto conversa comigo, remonta um trecho de cerca derribado pela cheia.
Ele então me participa o desafio que topou durante o esticado verão, na tentativa heróica para “escapar” da fome o seu rebanho de gado, dez cabeças. E me detalha a luta intensa do dia a dia naquela estação rude do ano, ele e o filho mais moço cortando cacto que, depois de assado, vira forragem. “Trabalho de doido”, me disse. “A gente não tinha folga, acordava de madrugada e ia cortar mandacaru, pra depois assar e botar pras vacas.” Nos relevos da sua pele ficaram bem crimbados os estigmas da luta: pele cavada pelos espinhos e garranchos, tostada pela soalheira e pelo fogo; mãos áperas e ressequidas.
O mandacaru, planta da caatinga, é a derradeira alternativa de salvação do gado na seca.
Agora, pisando a terra ensopada e olhando o verde triunfante da mata fresca por todos os lados, o sertanejo prefere ficar esquecido dos dias recentes de secura e incerteza. Ao mesmo tempo em que me diz que o pasto está a toda, que há fartura dágua e que os pés de jerimum, de milho e de feijão crescem a olhos vistos, ele dá sempre um graças a Deus reverente, tirando o chapéu e olhando para o alto. E não esconte a alegria de ver o seu minguado rebanho de boi mais robusto, de pêlo luzido, solto na manga.
Conversar com essa gente nos deixa enlevado. Chega-se a estabelecer um parâmetro para a suposta felicidade. Para um homem simples como esse, a quem a dimensão das coisas está reduzida ao seu mundo, a felicidade existe em pormenores que para muitos mortais passam despercebidos. Desligado de outros interesses, para o sertanejo autêntico tudo vai bem, obrigado… No seu dizer, “basta saúde e coragem pra trabalhar, que o resto Deus resolve”.
Mas não há que negar que o sertão também está pervertido, pois, junto com a sofisticação que importamos da cidade, vieram os males e as chagas sociais próprios do mundo urbano. Nessa maré de modismo, observa-se uma promiscuidade de ideias no sertanejo, bombardeado pelo noticiário da tevê, com suas imagens que chegam pelas enormes antenas parabólicas dominando hoje o telhado mais encardido do casebre mais humilde. E até já nos comunicamos com São Paulo – onde ainda teimam muitos dos nossos – através do telefone celular.
Nos alpendres, o ritmo em voga tomou o lugar do baião do Gonzagão e da cantoria de viola. O microssistem aposentou o velho rádio Semp. A nudez das atrizes de novela e das cantoras de banda de forró que aparecem na tela já é vista sem censura pelo matuto mais recatado. Tudo muito normal.
Assim está o sertão, vacilando entre o jeca e o chique.

Um comentário:

  1. Brilhante esta crônica, num português fluente e escorreito, sem perder a beleza e sensibilidade poética, refletindo uma sabedoria simples que toca mais a intuição do que o racional. Essas linhas tão perspicazes na análise que faz do sertão de hoje comparam o sertanejo simples e desprovido de certos modernismos funestos com os novos sertanejos influenciados pela propaganda ideológica do capitalismo. Ler estas linhas tão poéticas me deixou com saudade do sertão, eu que vivo aqui em Fortaleza e sinto a necessidade de vez em quando de visitar o sertão e contemplar sua natureza tão bela, especialmente no inverno.

    Parabéns!

    Flávio Henrique

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