Freitas de Assis*
No
trabalho de policiamento ostensivo e atendimento de ocorrências, das mais
comuns é a de violência doméstica. Raro é o fato deste tipo de violência ser
cometida contra homens. Geralmente é o contrário: a mulher, considerada o sexo
frágil, é quem leva a pior na história, embora ocorram vez por outra situações,
digamos, vexatórias para o homem, quando algumas mulheres literalmente partem
para cima e resolvem as desavenças de casal no braço; e assim como a mulher, quando
o homem leva a pior, nem sempre registra a ocorrência, talvez por se sentir
envergonhado ou achar que as tenazes da justiça sejam incapazes de atingir a
mulher neste tipo de situação, e que a lei Maria da Penha apenas protege as
mulheres, quando na realidade, hoje, ela serve para inúmeras situações de violência
doméstica, independente do grau de parentesco, apenas que haja vínculo afetivo
ou consanguíneo e uma convivência dentro de um lar.
Fato
semelhante se passou outro dia, quando um jovem trabalhador me procurou com
algumas cicatrizes pelo rosto, braço e pescoço, pequenos arranhões, e em tom de
brincadeira indaguei se ele havia brigado com um gato, e com um sorriso franco
apenas me disse que a companheira tivera um ataque de fúria e o agredira,
querendo apenas retirar o que lhe pertencia de dentro do imóvel onde viviam em
harmonia há quase dois anos. Informei-lhe então sobre pequenas formalidades a
ser cumpridas, como por exemplo, o simples fato de registrar um boletim de ocorrência
e a possibilidade de processar a ex-companheira, para resguardar os policiais
que atenderiam à ocorrência. Diante da recusa em não registrar a ocorrência e
nem processar sua antiga companheira baseada na lei Maria da Penha, informei-lhe
que não poderia ajudá-lo, já que sem vítima não havia crime, assim como não
existia situação de flagrante. Passado algum tempo, já havia esquecido este
fato, quando sou abordado na rua pela “vítima”, informando-me que sua antiga
consorte tinha “limpado” o imóvel em que combateram, deixando apenas a cama e
um fogão, mas que estava feliz e que a vida devia seguir seu fluxo e dela não
guardava mágoa.
Esta
história não tão incomum lembrou-me da jovem Rosevania, que conheci em Santa
Quitéria em 1993. Sobrinha de minha esposa, órfã aos dois anos quando a mãe
desta falecera de complicações no parto. Ainda adolescente, conhece seu algoz e
futuro marido, que a engravidou de sua primeira filha aos dezoito anos de idade.
Advaldo era seu nome. Homem trabalhador, tinha lá suas virtudes, entretanto era
chegado a um copo, e vez por outra ultrapassava os limites e seu ciúme doentio
se manifestava em hematomas pelo corpo de Rosevania. De princípio ela sofria
calada, porém abriu o verbo para a família, quando minha esposa, à época
grávida de nossa primeira filha e conosco morando em Canindé, foi até Santa
Quitéria visitar parentes e soube do fato. Tomando as dores por ela, foi à
delegacia e conseguiu que o mesmo fosse detido e processado. Nesta época, a Lei
Maria da Penha era um sonho distante e foi feito apenas um T.C.O. Poucos anos
depois Rosevania tem mais um filho, desta vez um menino, formando um casal,
entretanto as desavenças continuam e vez por outra ela aparecia com uma ou
outra mancha, valendo-se de eventuais desculpas para os machucados. Até que num
belo dia ela surge em Hidrolândia, onde eu com a minha família havia me
estabelecido desde 1998, e nos disse que se separara do companheiro devido às
constantes agressões. Eram meados dos anos 2000. Um novo século surgia com
esperanças de mudança, renovação e progresso para todos. Inclusive para Rosevania
e seus filhos. Planos foram feitos. Ele lhe pagaria uma pensão. A família de
Rosevania era grande. Havia muitos primos e primas que foram criados com ela
próximo dos avós, quase como irmãos. Certamente lhe ajudariam e se
comprometeram com isto.
Do
outro lado da balança, a família de Advaldo se mobiliza. Ele estava disposto a
mudar. Arrependido, incumbira suas irmãs a convencer Rosevania em reatar o
relacionamento, mas sua família usava argumentos os quais ela já sabia. Que ele
só falava da boca para fora e que certamente reincidiria em atos de covarde violência,
porém a dependência financeira e amor dos filhos ao pai certamente falaram mais
alto e Rosevania volta para os braços de seu companheiro.
Algum
tempo depois, não me recordo quando, a mesma cena se repete. Lá vem pela
estrada Rosevania com seus poucos pertences e um casal de filhos em busca de
segurança e paz para continuar sua vida. O mesmo enredo. Ele lhe batera e
quando foi trabalhar, ela fugira. E mais uma vez sua família ajudando e a de
Advaldo convencendo-a a reatar o conturbado romance. Até mesmo um vereador de
Santa Quitéria veio intermediar a conversa e, quando lhe indaguei se a
integridade física dela seria garantida por ele, me disse que não poderia
garanti-la, mas ela era livre para escolher. Diante da dúvida atroz que pairava
sobre Rosevania, Advaldo ajoelhou-se aos seus pés e jurou por tudo quanto era
mais sagrado, num ato de flagrante sacrilégio como se veria mais adiante, que
jamais tocaria em um fio de cabelo sequer de sua amada. A razão a mandava não
aceitar tais juras e tocar sua vida para frente, porém, como disse
anteriormente, a dependência econômica e o amor dos filhos ao pai falaram mais
alto.
Em
2003 mudei-me para Santa Quitéria. Morava no bairro Piracicaba com minha família,
próximo do bairro Menezes Pimentel, onde morava Rosevania, agora casada
legalmente e com mais uma filha. De 2003 até 2005, pelo menos dois ou três episódios
de desentendimento do casal protagonista de nossa narrativa já haviam ocorrido
com o mesmo desfecho.
E
como todo copo tem sua medida, o de Rosevania enfim transbordou em meados de
2005. Sem alarde nem escândalo, ela foi à delegacia, registrou o B.O, foi ao
fórum e marcou audiência, munida também de exame de corpo de delito, e conseguiu
de início, separação de corpos e arbitramento de pensão, além de morar na casa
que construíram com os filhos, ficando a divisão dos poucos bens para depois.
De todas as formas ele tentou em vão reatar o casamento. Rosevania estava
irredutível. Criara coragem, endurecera e não mais cederia às chantagens e
promessas de Advaldo e suas irmãs. Não mais surgiria de olho roxo e cabeça
baixa nas ruas de Santa Quitéria. Mais de dez anos se passaram desde que a
conheci. Uma nova mulher surgia. De cabeça erguida e com vontade de trabalhar,
criar seus filhos e ser independente, porém andava com medo. Advaldo desejava a
casa. Queria vendê-la e as imposições da justiça o impediam. Ameaçou-a. Acusara-a
de ter um caso com um companheiro seu de trabalho.
Infelizmente,
em janeiro de 2006, o desfecho da história. Rosevania foi covardemente
assassinada com três golpes de faca à altura do pescoço pelo seu ex-marido, que
um dia jurou amor eterno aos pés do altar. Foi preso e condenado a doze anos de
reclusão por nossas leis. Em 2012, eu estava em Santa Quitéria com minha filha
Amanda esperando um ônibus para Canindé. Era um domingo. Quando embarco no ônibus
e me dirijo ao assento, cruzo com o assassino de Rosevania confortavelmente
sentado em completa liberdade, passados pouco mais de seis anos do crime e com
um histórico de violência que não caberia nesta coluna.
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Cabo PM, colaborador do blog*
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