sexta-feira, 5 de agosto de 2011

cantoria


MARTELO AGALOPADO:
O DESAFIO DOS DESAFIOS

Uma das provas de fogo do cantador repentista é o martelo agalopado, um gênero de cantoria que exige muito fôlego e habilidade. Diz-se que um cantador é dos grandes quando é bom em “martelo”. Esse estilo não é nada mais que o decassílabo heróico, geralmente em estrofes de dez linhas sobre um mote. É quase uma presença obrigatória nos desafios de viola. Toda boa cantoria tem que ter um “pega” em martelo. Nessa composição, o cantador encontra mais espaço para expor suas ideias. Em seu livro Gênios da Cantoria, escrito em parceria com Geraldo Amancio, Wanderley Pereira dedica um capítulo inteiro ao martelo agalopado. Foi de lá que recolhemos essa estrofe, de autoria do próprio Geraldo, uma das maiores expressões da viola nordestina na atualidade:

Entre os Dez Mandamentos dos sermões,
Respeitar pai e mãe é o primeiro,
O defeito de um filho é ser grosseiro;
A virtude dos pais é serem bons.
Todo filho tem três obrigações:
Escutar, respeitar e obedecer;
Respeitar pai e mãe é um dever;
Esquecer mãe e pai é grosseria,
Se não fossem meus pais, eu não teria
O direito sagrado de viver.

Do mesmo livro retiramos também essa passagem: “A denúncia social é um dos temas mais presentes nas cantorias, de preferência nos festivais que se realizam em locais estratégicos nas cidades. São geralmente lugares públicos, de acesso fácil, que costumam atrair também outras pessoas nem sempre envolvidas com a cantoria. Do poeta Zé Luiz (José Luiz Carlos Lima), do Rio Grande do Norte, recolhemos esta denúncia sobre os catadores de lixo, em São Paulo, a partir do mote: ‘A ganância dos ricos tem gerado / Batalhões de futuros marginais’:

Quando a Lua aparece, o céu se enfeita
E à procura do lixo os cães circulam,
Procissões de menores perambulam
Pelos becos de alguma rua estreita.
São os filhos que a Pátria-Mãe rejeita,
Os herdeiros do nada, órfãos de pais,
Fotocópias da terra, onde os chacais
Tão matando o futuro soterrado,
A ganância dos ricos tem gerado
Batalhões de futuros marginais.

Quem for rico, reflita, pare, olhe!...
Diminua seu lucro, não cobice,
Não rejeite o menor, que Jesus disse:
‘Quem acolhe a criança, a mim acolhe.’
Dê cobertas pra que ela não se molhe
Ao dormir nas sarjetas, nas centrais,
Se despoje dos bens materiais,
Cruze as portas do céu menos pesado,
A ganância dos ricos tem gerado
Batalhões de futuros marginais.

Nesta marcha terrível em que vamos,
Daqui mais uma década até antes,
Estaremos cercados de assaltantes,
Convertidos no monstro que criamos.
Tentaremos sair de onde entramos,
Mas aí já será tarde demais,
Com remorso olharemos para trás
Com vergonha do bem desperdiçado,
A ganância dos ricos tem gerado
Batalhões de futuros marginais.’”

♦♦♦

Curiosa é essa décima em martelo agalopado que determinado cantador fez para João Cabral de Melo Neto. Provocado por um intelectual a cantar sobre o poeta pernambucano, o cantador, que ignorava quem fosse João Cabral de Melo Neto, supôs que se tratasse de três pessoas diferentes, e glosou:

Todos eles são nomes muito estranhos,
Não conheço nenhum nesta ribeira,
Mas conheço Azulão, Louro e Bandeira
E outros nomes de todos os tamanhos.
De nenhum eu respeito os arreganhos,
Pode ser o mais sábio e mais completo,
Como fiz com Zé Duda e com Anacleto,
Esses três do senhor eu mato e piso,
Nenhum deles me vence no improviso,
Nem João, nem Cabral, nem Melo Neto.

4 comentários:

  1. "Procissões de menores perambulam
    Pelos becos de alguma rua estreita.
    São os filhos que a Pátria-Mãe rejeita,
    Os herdeiros do nada, órfãos de pais,
    Fotocópias da terra, onde os chacais
    Tão matando o futuro soterrado."

    "Nesta marcha terrível em que vamos,
    Daqui mais uma década,até antes,
    Estaremos cercados de assaltantes,
    Convertidos no monstro que criamos (...)"

    Genial! Não sabia que o repente tinha também esta vertente com uma crítica social tão lúcida. Para ver a realidade social com tanta clareza, não é preciso ser filósofo, economista ou sociólogo. Basta ser sensível, ter discernimento entre o certo e o errado, o bem e o mal, intuição e uma visão de mundo não distorcida pelos condicionamentos sociais e ideologias de inspiração capitalista; enfim, não ser alienado (com a conotação que Marx criou), coisa que infelizmente é muito comum de se ver na nossa sociedade.

    Flávio Henrique

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  2. Do Tratado de Versificação de Glauco Mattoso, lembro essa pérola de Dimas Batista, que talvez pareça glosar o estilo do conterrâneo Augusto dos Anjos:

    Não faz nojo a catinga dos timbus,
    nem das feras carnívoras da mata,
    não faz nojo a matéria putrefata
    que alimenta os famintos urubus.
    Das hienas, chacais e caititus,
    nojo algum me provoca aquele cheiro.
    Os micróbios que há no mundo inteiro
    não me fazem ficar nauseabundo.
    Só o que me faz nojo neste mundo
    é a língua de um cabra fuxiqueiro.

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  3. O poeta ZÉ LUIZ é irmão do também poeta e ex-cantador Crispiniano Neto, meu amigo pessoal. Ambos são geniais.
    Gostei do comentário do Flávio Henrique. Embora ele não sendo muito sintnizado com o universo do cordel e da cantoria, soube detectar nos versos apresentados a eterna luta do poeta popular pelo exercício pleno da cidadania. Isso vem desde os tempos do velho Leandro Gomes de Barros, autor de "Padre Nosso do Imposto", "Ave-Maria das Eleições" e outros poemas satíricos de grande valor. O cordel e a cantoria sempre tiveram essa forte ligação com a crítica social.

    Vejamos essa sextilha de Leandro criticando o imposto:

    Assim morre o brasileiro
    Como um bode exposto a chuva
    O imposto é a cangalha
    E a palmatória é a luva
    Família só herda dele
    Nome de órfão e viúva.

    ARIEVALDO VIANA

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