ESCLARECIMENTO
Humberto de Campos*
Embainhado no seu pijama de seda malva, do qual jamais soubera o preço, o Josué Lobato Melo estava com o rosto ensaboado, em frente ao espelho do guarda-casaca, fazendo morosamente a barba. A gilette niquelada corria-lhe pela epiderme, num ruído áspero, de papel machucado. De vem em quando, o rapaz inchava a bochecha, para raspar mais fundo. E o pensamento voava-lhe para longo, vagabundo, em visita a bancas de jogo e a corpos de mulheres.
Foi nesse momento precisamente que a esposa, a Antonieta, entrou no quarto. Vinha do banho, e embrulhava-se toda, arrepiada e friorenta, na sua capa de felpa, que, toda branca, lhe dava os ares de uma gatinha de raça.
Num momento, porém, a capa é atirada para uma cadeira, e aparece, em todo o seu esplendor, o corpo jovem da rapariga. Pelo espelho, indiferente àquele tesouro que é seu, o Lobato Melo vai vendo as moedas que o constituem: o colo firme, os seios pequenos e túrgidos, o ventre e éfebo, as pernas elegantes, modelares, de Diana Caçadora. A testa, os olhos, a boca, as faces, não as pode ver dali, porque o cabelo dourado e curto, que a moça enxuga no momento com uma toalha pequena, lhe cai até o queixo, como a cortina de ouro à porta de um templo encantado.
De súbito, porém, a rapariga vira-se e o que aparece no espelho é, exatamente, a outra face do seu corpo. A anavalha range no rosto do rapaz mas os seus olhos começam a subir, por simples desfastio, por aquela coluna de carne. Admira-lhe os tornozelos brancos, delicados, que emergem da sandália de pelica azul. Analisa-lhe a perna, a coxa, e as ancas firmes, e a cintura graciosa, e as espáduas que se defrontam, claras, lisas, como as duas folhas de um álbum em branco, e em que só se devesse escrever com letras de beijos. E o Lobato Melo ia subir, com os olhos, aquela escada de neve, quando, de repente, indagou, sem se voltar.
- Que mancha é essa, roxa, aí na tua nuca?
Antonieta levou a mão, pelo tato, ao lugar indicado.
- Aqui?
- Sim.
- Tu não sabes, então, que eu tinha de pagar, ontem, aquela conta da costureira?
O rapaz não respondeu. O silêncio caiu, de novo, no aposento no qual só se ouvia, discreto, o escorregar da gilette pelo sabão…
Esse tipo de historieta é que fez a fama de Humberto de Campos. Não é crônica, nem conto. Há uma carga muito grande de erotismo subentendido. Ao mesmo tempo é feita uma crítica ferina ao casal, em que a beleza apolínea da mulher não a exime dos defeitos morais do marido, mas são uma contribuição à economia doméstica do casal. Gostei bastante da ilustração da postagem...
ResponderExcluirNooosa! caí do cavalo. Imagine o Lobato. rsrs. Muito bom o texto PPP. Obrigada por esse presente de domingo.
ResponderExcluirDiscordo em parte com o ponto de vista de Silvio R. Santos. Humberto de Campos consagrou-se como um dos maiores cronistas brasileiros na década de 30. À custa de sua crônica diária em jornal, conseguiu popularidade suficiente para levá-lo ao parlamento como deputado pelo Maranhão, sua terra. Ele, inclusive, foi um dos inauguradores da crônica, uma vertente literária que nasceu no Brasil. Aliás, seus dois livros de memória não mais do que crônicas reunidas.
ResponderExcluirQuanto a ser mestre da crônica, não há dúvida, Humberto é arrolado por Ivan Junqueira no seu estudo Machado de Assis Cronista como um dos que definiu esse gênero,hoje já quase vilipendidado, que alguém já disse ser um conto sem enredo. A referência é quanto ao que realmente vendeu na obra do maranhense, a parte fescenina, que enfeixou vários volumes desse anedotário, do qual o exemplo mais famoso é seu Diário Secreto(quanto aos temas picarescos,claro), publicado postumamente. Cheguei a ler vários desses contos (o autor assim os considerava), emprestados pelo saudoso Francisco Karam.
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