domingo, 22 de maio de 2011

MOLEZA DOMINICAL


Transcrevo hoje uma crônica humorística do escritor maranhense Humberto de Campos (1886-1934).

FUTEBOL
Humberto de Campos

Houve um tempo em que tudo, no Rio, tinha por padrão o jogo do bicho. Qualquer sonho, qualquer palavra, qualquer gesto, era um palpite, que se transformava em número, e o número em grupo, e o grupo em um dos vinte e cinco animais enjaulados na famigerada combinação lotérica.
- Quantas pessoas morream hoje? – perguntava alguém, às vezes.
- Quarenta e seis – respondiam.
E o jogador, pronto, aproveitando o palpite:
- Elefante!
Se eram moças que conversavam, e tratava-se de casamento, indagava uma:
- Que idade tem o noivo?
- Vinte e cinco anos.
- E tu?
- Dezessete.
E a maníaca, batendo as mãos?
- Esplêndido! Macaco e vaca!
Sujeitos havia tão obcecados pelo jogo, que apanhados pelas rodas de um automóvel, faziam questão de ver-lhe o número, menos pela ideia de denunciar o motorista à polícia, do que pelo desejo de aproveitar o palpite. Foi para um doente dessa espécie que um poeta, meu amigo, fez o seguinte epitáfio:

Quando ele, cumprindo a pena
Se afundou na terra escura,
Jogou a alma na dezena
Da pedra da sepultura!

A mania, a ideia absorvente, é hoje, o futebol. Tudo se reduz, atualmente, a shoot, a team, a goal, a macht, a uma nomenclatura inglesa de efeitos rebarbativos, que constitui, entretanto, uma delícia para os iniciados. Ainda há três dias tive a oportunidade de verificar a influência do futebol, mesmo nos assuntos que mais lhe são opostos.
Era à noite, por ocasião de um incêndio à rua Sete de Setembro. Na Avenida, próximo do local do sinistro, o povo amontoava-se olhando o espetáculo apavorante, quando o Corpo de Bombeiros chegou, buzinando e tilintando. Em um momento, foram estendidas, na rua, seis linhas de mangueiras, atacando o fogo. E foi nesse instante, no mais grave e impressionante da tragédia, que eu ouvi ao meu lado, onde se achavam diversos grupos de moças, esta observação imprevista:
- Olha, mana, bom agouro!
- Em quê? – indagou a outra.
E a primeira, radiante, apontando as chamas e os bombeiros:
- Botafogo, 1; Mangueira, 6!
Era, realmente, o cúmulo.



2 comentários:

  1. O grande maranhense é referência obrigatória na história do gênero crônica no Brasil. Embora a última coletânea publicada pela Global, não reúna, a meu ver, o que de realmente lírico e comovente se reúne na concepção e feitura de seus textos mais curtos, embora o próprio fato de serem reeditados seja um sinal positivo da permanência da sua obra. Pode-se ler com prazer a maioria dos seus escritos, ao contrário de tantos medalhões atuais que se cobrem com a capa sempre disponível do esoterismo e afins para aporrinhar o leitor contemporãneo...

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  2. Dizer que o Brasil é um país sem memória é o óbvio ululante, mas eu duvido que os aficcionados pelo futebol esqueçam Garrincha, Pelé, Didi, Jairzinho, Rivelino etc. Os que cultivam as letras, ao contrário, jogaram uma pá de esquecimento sobre a magnífica obra do escritor maranhense Humberto de Campos. Logo ele, que foi o escritor mais lido de seu tempo! E não apenas ele é vitima de olvido... Vejam por exemplo o caso de Gustavo Barroso, autor de 125 livros e presidente, por tres vezes, da Academia Brasileira de Letras. Quase ninguém mais fala de Coelho Neto, Viriato Correia e outros nomes de destaque no cenário das letras nacionais. Mas... Duvido que esqueçam a copa que o Brasil perdeu para o Uruguai em 1950, em pleno Maracanã!

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