quarta-feira, 12 de agosto de 2015

CRÔNICA

A Igreja Católica celebra anualmente em várias partes do mundo um de seus santos mais populares: S. Roque – o peregrino nascido na França por volta de 1295 e padroeiro dos inválidos e cirurgiões. No Brasil, o culto a S. Roque acontece em muitas cidades e comunidades interioranas. Vila Campos, no sertão central cearense, por exemplo, há cerca de 120 anos venera S. Roque, padroeiro da povoação e orago da capela que é uma das mais antigas do município de Canindé. Os festejos acontecem ali tradicionalmente na primeira quinzena de agosto, conforme ritos e costumes da população conservados fielmente através de gerações. Prova da difusão do culto a S. Roque é encontrada no livro “Mendigos”, publicado em 1920 pelo mineiro Alphonsus de Guimaraens (1870-1921), um dos poetas mais importantes do Simbolismo no Brasil e que se destacou também na prosa. Transcrevemos a seguir a crônica do poeta:


S. ROQUE, O MIRACULOSO CONFESSOR*

Alphonsus de Guimaraens

Fez precisamente cento e cinquenta anos no dia 29 do mês de fevereiro que foi doada à Venerável Ordem Terceira da Penitência, de S. Francisco (de Mariana), a bela imagem de S. Roque, nascido em França, a heroica Filha Primogênita da Igreja, e que floresceu nos fins do século décimo terceiro.
Todos os hagiólogos têm tratado da vida extraordinária deste grande Santo, que fulgura como uma das mais maravilhosas estrelas da fé cristã no céu perenemente azul da Igreja; o seu nome, invocado sempre por milhares de devotos e crentes, cresce cada dia na adoração do povo.
S. Roque veio assinalado ao mundo: nascera com uma vermelha cruz minúscula, desenhada no peito, a ditar-lhe o fado que teria na terra. Um escritor piedoso, relembrando esse fato, diz que, embora a cruz não apareça impressa no nosso corpo, como sucedeu a S. Roque (pois só a um predestinado podia isto acontecer), todos nós nascemos com ela, por dádiva de Deus, e na verdade, não há quem não a veja cintilar no fundo da alma como parte integrante de nós mesmos.
A vida de S. Roque foi um rosário resplendoroso de milagres. Mortos os seus pais, despojou-se de todos os bens da fortuna, que lhe eram avantajados, e repartiu a sua riqueza pelos pobres; professando na Ordem Terceira de S. Francisco, vestiu-se de peregrino e deixou por muito tempo a França, pois era o seu intento visitar os mais afamados santuários da Itália.
A peste negra desoladora ceifava milhares de vidas na bela península do Lácio; S. Roque uniu-se aos enfermeiros, e, em diversas cidades, foi o mais incansável entre eles. Por longos anos Roma conservou, como uma unção, a memória dos prodígios praticados pelo grande Santo; aumentava dia a dia o número de pestosos salvos pela sua intervenção sagrada.
Em Placência a cruel epidemia o atacou; de enfermeiro sempre em vigília, viu-se o obstinado e pertinaz gaulês transformado no mais paciente enfermo. Foi nessa ocasião que uma seta, que viera de paragens desconhecidas, o feriu gravemente em uma das pernas; sentiu o Santo aumentada ainda, se possível, a sua humildade: aprendeu a compadecer-se mais dos males alheios com a experiência dos seus próprios males.
A sua enfermidade, a sua chaga, tinham sido novas fontes de milagres; resolveu, entretanto, deixar a Itália e voltar para o país que lhe fora berço generoso. Quando atravessava uma região desabitada, viu-se de novo recaído na doença; só pôde lançar-se debaixo de uma copada árvore, inteiramente desamparado de todo o socorro humano. Mas Deus o não desamparou: a mão d’Aquele que sustentava os eremitas nas covas do deserto, guiou um cãozinho fiel até o lugar onde o Santo se definhava. Esse animal trazia-lhe, todos os dias, o pão necessário à sua vida e fazia-lhe a higiene da ferida, lambendo-a e lavando-a com água que na boca conduzia.
Um anjo luminoso, que só o Santo via, para fortalecê-lo e animá-lo, guiava-o na sua peregrinação.
Seguiu enfim para a sua pátria. Achou a França perturbada por guerras calamitosas; não se querendo dar a conhecer, foi tido por um espião dos inimigos, que se disfarçara com veste de mendigo e peregrino. Recolhido a uma prisão horrível, volveu para Deus a sua alma sedenta de martírios; durante cinco longos anos, sem que ninguém desconfiasse que ali estava um dos maiores franceses de seu tempo, S. Roque suportou o duro cativeiro que lhe dava a própria pátria.
Faleceu enfim, depois que saíra da prisão, vitimado por nova recaída de peste; ele, que salvara a tantos enfermos, não pediu a Deus que o salvasse: recebeu a morte com toda a angélica tranquilidade do seu ser, como só a sabem receber os Santos.
Depois de morto, a sua identidade foi reconhecida por um tio; este seu parente, vendo que o povo, ainda antes da sua canonização, o venerava como a Santo, pela série contínua de milagres, ergueu-lhe um templo. O concílio de bispos de Constância, declarando e publicando a santificação do magnânimo francês, aprovou que a sua imagem fosse levada em procissão em tempo de peste; até hoje, decorridos tantos séculos, perdura no orbe católico essa prática piedosa.
E os milagres do caridoso Santo continuam a fortalecer eternamente as almas que nele creem e lhe pedem o seu sobrenatural auxílio.

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*Agradecimento ao poeta Silvio R. Santos pela indicação do texto.

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