terça-feira, 24 de setembro de 2013

CONVERSA COM UM DESCONHECIDO

Freitas de Assis*

Trabalhando fora de Canindé por algum período, como em outras oportunidades e mais uma vez em Santa Quitéria, concluo mais um ciclo de trabalho cheio de dificuldades para exercer o ingrato ofício, como a falta de efetivo, e vou tentar a sorte com mochileiro de ocasião com um só destino, e apelo para a caridade de eventuais companheiros involuntários de viajem para seguir em direção ao sagrado recesso do meu lar em Canindé.
Logo de início, na primeira abordagem no posto da Polícia Rodoviária Estadual (PRE), um motorista solitário pára seu veículo e já vai sacando os documentos para uma eventual fiscalização, a qual não chega a ser concretizada. Identifico-me, antes, porém, um cordial bom-dia e já indago seu destino e a remota possibilidade de acompanhá-lo até a Meca Franciscana. Obtendo resposta positiva, despeço-me dos policiais do posto e embarco em mais uma jornada de cem quilômetros pela rodovia CE-257, onde se constatam os efeitos da severa seca, já histórica como as de 1915 e 1958, estas, entretanto, sem o paternalismo assistencial do governo em forma de bolsas de distribuição de renda, tipo bolsa-escola e bolsa-família, além de carros-pipas e as polêmicas cisternas de polietileno.
O motorista que me conduz ao meu destino é um homem de seus sessenta e poucos anos, robusto, de pele branca e, pelas roupas, pelo modelo do veículo e pela forma articulada de se expressar, imagino ser algum empresário bem-sucedido ou mesmo uma velha e matreira raposa da política e que já deve ter visto muita coisa de bom e ruim nesta vida.
– Um homem deve defender seus ideais e opiniões com unhas e dentes, embora deva respeitar o ponto de vista dos outros – foi o que me afirmou meu companheiro de viagem. Durante nossa conversa percebi que era uma pessoa culta, com formação acadêmica, conhecedor de problemas sociais que afligem esta nossa rica nação. Alguém com contatos nas altas esferas do poder, pois afirmou ter sentado outro dia à mesa do restaurante Le Marine, em Fortaleza, na companhia do governador Cid Gomes. Disse que estava morando no país errado e que aos 27 anos de idade deveria mesmo era ter ido para o Canadá, mas não o foi. Contou que já viajou muito pela Europa, Canadá e que vai constantemente para os Estados Unidos, onde mora um de seus filhos, e sobre estes países, aponta problemas no Brasil que lá não existem ou são minimizados.
Durante nossa conversa concordamos em várias questões e discordamos em outras.  A burocracia, por ele chamada de ‘’burrocracia’’, e o arcaico e obsoleto sistema tributário vigente no Brasil, enferrujam a engrenagem do progresso em nosso país, e que projetos de reformas política e tributária, empancadas no Congresso há algum tempo por conta de interesses de minorias poderosa, e que a falta destas reformas ajuda a fomentar a máquina da corrupção e desvios de recursos públicos, foram pontos em que concordamos.
Outro assunto discutido em nossa jornada, ao passarmos defronte à fazenda Xinuaquê, comprada há vários anos por um grupo português e que já hoje convive com um acampamento de um grupo de sem terra enfeitando–lhe a fachada, foi a reforma  agrária. Segundo ele, por culpa do governo do PT na última década, esta não andou o quanto poderia, caso o governo fosse de outra ideologia, e que nestes grupos de sem-terra, sem-teto e outros do tipo, existem marginais infiltrados e grupos treinados em guerrilhas com o claro intuito de bagunçar o movimento ou mesmo conseguir lucro fácil em eventuais invasões. Impossível para nós, policiais militares, manter um diálogo com desconhecidos por mais de uma hora e meia, tempo médio do trajeto Santa Quitéria a Canindé, e não cair no tema segurança pública. Com números de mortes no trânsito e assassinatos mais expressivos que o de países em conflitos bélicos e guerra civil, chegando perto de uma pandemia, concordamos que o modelo de segurança pública no país deva ser repensado, e que o número absurdo de policiais mortos em diversas capitais, sobretudo Rio e São Paulo, mas também no Ceará, demonstram que algo não vai bem; que o código penal é ultrapassado e que as leis nele contidas deixam transparecer a impunidade e aumentam a sensação de insegurança, sendo que nossos legisladores e gestores devem fazer algo, e rápido, caso contrário o caos poderá se instalar em nossas ruas e virar rotina em nossos dias.
E apesar de tudo, existe uma luz no fim do túnel. Graças às pequenas de muitas mudanças que ocorreram e ocorrerão devido às manifestações que se tornaram corriqueiras em nossas ruas; entretanto, discordamos neste ponto, quando ele afirmou que as badernas, quebra-quebras e saques perpetrados por grupos de vândalos são um mal necessário. Enquanto a maioria vai com fins pacíficos e ideais de mudança, uma pequena parte está predisposta ao conflito e outros vão com o claro intuito de partir para a violência e confronto, enquanto outros ainda vão apenas para furtar e saquear. Sem estes que vão bagunçar o coreto, o governo ficaria inerte e apenas aplaudiria a massa que protesta pacificamente, mas sem efetuar qualquer mudança. Exemplos ocorridos na França, durante a Revolução Francesa e os protestos estudantis de maio de 1968, além de outros ocorridos em diversas partes do mundo, como na Inglaterra, na Grécia e no próprio Brasil, como na Revolta da Chibata em 1910, quando marinheiros se rebelaram contra maus-tratos sofridos por eles nos navios e quartéis e liderados por João Cândido, o almirante negro, foram citados por ele.
E sobre a truculência dos militares, falou que em meados da década de 1960 deixou de ir para a Academia Militar das Agulhas Negras, quando era aluno da escola técnica, por ter ojeriza aos militares, uma vez que viu no começo da ditadura de 1964 amigos e professores detidos por homens de verde oliva ostentando fuzis 7.62 com baionetas nas pontas, invadiram sua escola e barbarizaram com os colegas, alguns jamais apareceram. Ele fora convidado para a afamada academia, juntamente com outros alunos pelo Brasil, por ser bem classificado na escola e ingressaria sem concurso. Por suas convicções e sentimentos não aceitou.
Hoje os tempos são outros. Existe ainda muita coisa mal explicada sobre os ditames do obscuro período. A lei de anistia sancionada no fim do regime militar mostra-se fraca ante a comissão da verdade. Algumas histórias voltam à tona e alguns protagonistas ainda estão vivos e suas feridas não foram devidamente sanadas. Mais a vida continua e ela mostra-se uma caixinha de surpresa, às vezes até irônica. Nosso amigo disse que as feridas deixadas pelos militares em sua vida já sararam e ele não tem ojeriza ou raiva de militares, caso contrário nossa viajem não teria tido tanto assunto. Como informei no início desta narrativa, nosso amigo tem um filho morando na América do Norte. Antes, no Ceará, cursou alguns semestres numa faculdade e cogitava entrar nas forças armadas ou mesmo na PM alencarina, quem sabe ir para o BPRAIO. Mas ele foi para os Estados Unidos e hoje, depois de conseguir o GREEN CARD, ingressou nos fuzileiros navais americanos, deixando seu pai muito orgulhoso, ao mesmo tempo apreensivo, já que os americanos consideram-se a polícia do mundo e teme que seu filho vá lutar lá fora em guerras alheias, como na Síria, que parece ter usado armas químicas contra a população e, os americanos, ao invés de levar ajuda humanitária, cogitam levar mísseis e fuzis contra o povo sírio.

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*Cabo PM, colaborador do blog.

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