GLAUCO MATTOSO
POETA DA CABEÇA AOS PÉS
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completou 62 anos no dia de S. Pedro de 2013, é poeta, ficcionista e cronista.
Já escreveu diversos livros e é autor de mais de cinco mil sonetos. De
nascimento, Pedro José Ferreira da Silva e por pseudônimo, Glauco Mattoso, em
alusão à deficiência visual que o vitimou. Emprega em seus escritos uma
ortografia antiquada, em protesto à última reforma ortográfica da língua
portuguesa. É fescenino por convicção, podólatra juramentado e sua poética, na
maior parte, está vestida pela vetusta roupagem do soneto, gênero que ele
lapida com incrível habilidade, métrica e rima apuradas, sendo um craque a
ombrear-se com os recordistas em número de sonetos publicados. O traje que
abriga sua inspiração é por ele caprichosamente costurado e abotoado e
exemplarmente bem realizado, tornando-se em nossos dias uma das peças mais
vistosas na vitrine literária nacional. Paulistano de Vila Mariana, Glauco
Mattoso tem uma série publicada, incluindo-se os livros “As mil e uma línguas”, “Aos
pés das letras”, “A planta da donzela”, “Faca cega” e “Panacéia – sonetos
colaterais”. A rebeldia, a sátira, a inovação e o humor são o tempero fundamental
da sua obra fecunda e de larga temática. Do antigo editor de fanzine, o nosso
Gregório de Matos hodierno é assunto corrente de publicações literárias e
também está de modo virtual sintonizado com seu imenso fã-clube. Confira, com
exclusividade, a entrevista que Glauco Mattoso, via internet, concedeu a Silvio
R. Santos, colaborador do blog, admirador e pesquisador da obra mattosiana.
SRS:
Da sua passagem como funcionário de um banco, se possível, cite alguma
lembrança burocrática de sua antiga rotina.
GM:
Não ha como lembrar dum facto especifico quando se tracta de rotina. Mas
naquella epocha estavamos no auge da dictadura militar e eu, affectando um
conservadorismo mais esthetico que ideologico, me vestia mais rigorosamente do
que o proprio banco exigia. Alem de paletó e gravata, usava collete com relogio
de bolso e corrente. Um dos chefes, que pertencia à TFP e usava o broche
daquella instituição na lapella, veiu fallar commigo para saber si eu era mesmo
tão conservador. Talvez quizesse alliciar-me. Mas repelli sua abordagem da
forma mais inesperada: alleguei que a TFP não era sufficientemente
tradicionalista para o meu gosto, pois não adoptava esta orthographia em que
escrevo e apoiava um governo de generaes em vez de luctar pela volta da
monarchia. O cara, que me achava exquisito demais, ficou desconcertado, mas nem
siquer podia me accusar de subversivo, ja que eu estaria mais distante da
esquerda do que elle proprio...
SRS:
Na vida pessoal sua famosa podolatria é um fato ou mais uma entre tantas
personagens de sua obra?
GM:
É um caso veridico de fetichismo que transformei em faceta da personalidade do
"eu lyrico", alem de argumento para a prosa de ficção e a
memorialistica. Nem preciso recapitular a origem do fetiche, pois foi thema
exhaustivo de centenas de sonetos entre meus milhares.
SRS:
Seu heterônimo Pedro Ulysses Campos surge em que tempo? No momento em que
concebe seus poemas ou só parte para a análise após a fatura? Como você lida
com essa intertextualidade? Haveria influência sobre a obra desse terceiro
olhar?
GM:
Esse heteronymo de perfil suppostamente "academico" nem existia na phase
do JORNAL DOBRABIL (quando eu adoptava outros, typo Pedro o Podre), nem existia
no começo da phase sonetistica. Acabou surgindo mais por causa do site hoje
extincto, para cuja construcção serviu como supporte theorico, como que um
"orientador critico" da obra mattosiana. Quando reformulei o site
elle perdeu um pouco a relevancia e, uma vez desactivado o site pelo provedor,
ficou relegado aos sonetos em que o menciono... (risos) Tadinho do PUC, cujas
iniciaes remettem a uma saudosa universidade de tantas referencias
escholasticas! (mais risos)
Embora
eu seja uspiano de formação (a faculdade de bibliotheconomia era aggregada à
USP), era na PUC que actuavam os concretos e sympathizantes...
SRS:
Há qualquer confluência entre "Eugênio Oneguin" e "Raymundo
Curupyra o Caypora", além da forma soneto que você mesmo precaveu em
entrevista?
GM:
Sim. Embora a estructura de Pushkin esteja baseada no eschema inglez, ha a
confluencia generica entre poesia narrativa e ficção romantica, hoje cada vez
mais rara, alem do facto de que o enredo também tracta de dois amigos.
Portanto, alem de confluencia, influencia. Sempre me reporto a algum classico,
si alguem for averiguar.
SRS:
O soneto de quartetos independentes merece o nome de soneto?
GM:
Quaesquer poemas de quattorze versos mereceriam, independentemente da
estrophação. Si eu não admittisse isso, não teria practicado o soneto de cinco
estrophes em eschema AA BCB DEED BCB AA que tanto propalei.
SRS:
Ao revisitar a monografia "O Soneto" de Cruz Filho que conclusões lhe
foram importantes na contextualização da obra? Como analisa o parnasianismo
anacrônico do poeta?
GM:
Ahi é que está. Não acho que nenhuma eschola seja anachronica. O que falta é
mais gente adoptando esta ou aquella esthetica, dahi por que o Cruz ficou meio
isolado como parnasiano retardatario. Si os poetas fossem mais informados e
pedeutas, cada um escolheria sua eschola, como um musico que escolhe tocar
chorinho ou bossa nova, ou um architecto que escolhe projectar uma casa
neoclassica ou modernista.
SRS:
Até que número atingiram os sonetos que realizou? Você ainda os fará de forma
sistemática ou deixará solta essa decisão?
GM:
Só capitulei ante a sonetite sonetomaniaca emquanto precisei superar recordes
(como o milhar de Delphino ou os dois milhares de Belli), mas depois que passei
do quincto milhar vi que o vicio precisava ser enfrentado como o fumo ou o
alcohol. (risos) Então, para não fugir à mania de planejar tudo, decidi parar
no 5555, ja que as sonatas de Scarlatti totalizaram 555. Um cinco a mais.
(risos) Chegar aos 6666 seria dar muita trella ao demonio da poesia. (risos)
Agora, caso sinta necessidade de compor algo, uso a trova ou a decima,
eventualmente glosando um motte autoproposto, como estas ineditas que collo
abaixo.
Sabe
um cego o seu logar:
vaga
alheia não occupa.
Quem
visão tem, si mandar
chupar
rola, o cego chupa.
Entre
irmãos, um que não veja
paga
ao outro uma "lambuja":
chupa
a rola, mesmo suja
e
fedida, até que esteja
satisfeito.
Não se peja
quem
enxerga de cobrar
a
"lambuja", pois azar
dum
é sorte doutro. Acceito
eu
tal regra e dou direito:
sabe
um cego o seu logar.
Sei
dum caso assim: os dois
eram
gemeos e um, só, cego.
Quem
são elles não entrego:
não
darei o nome aos bois.
Mas
o facto é que, depois
dalguns
annos, nem com lupa
este
enxerga e, logo, um "Upa,
cavallinho!"
ouve. A montal-o
vem
o irmão, ja que um cavallo
vaga
alheia não occupa.
De
"lambuja" a brincadeira
é
chamada pelos paes,
que
saudaveis e normaes
acham
essas coisas. Queira
ou
não, elle, em breve, cheira,
do
dedão ao calcanhar,
do
maninho o pé, que um ar
não
esconde de maldade.
Nada
impede que o degrade
quem
visão tem, si mandar.
Ja
mais velhos, em segredo
a
chupar rola se obriga
o
ceguinho e evita briga.
Ao
fedor e ao gosto azedo
se
acostuma desde cedo.
Seu
irmão nem se preoccupa
em
lavar-se e, em catadupa,
jorra
a porra. Si é divino
o
poder e é seu destino
chupar
rola, o cego chupa.
SRS:
Na sua vasta obra de sonetista, quando faz um soneto você começa pelos últimos
versos ou de qualquer posição nas estrofes?
GM:
Jamais comecei pelo fim, como às vezes faziam os barrocos ou os parnasianos
preoccupados com chaves de ouro, excepto quando fiz uma coroa. (risos) O soneto
sempre me sahiu quasi como a escripta automática dos surrealistas. Parece
difficil de acreditar, tractando-se de poema de forma fixa, mas dá para
entender quando raciocinamos como o repentista, com o qual vocês estão
familiarizados... (risos) Alem do mais, lembrem-se de que, nas insomnias
creativas, sou possuido, como Pessoa ou Borges, si é que o foram...
(gargalhadas macabras)
SRS:
Sendo um mestre na arte da escansão, porque não transgrediu o verso e a rima em
sua obra, excluindo-se seu caráter mnemônico?
GM:
Até Augusto de Campos inquiriu-me accerca disso, suggerindo que eu desconstruisse
o soneto como alguns vanguardistas fizeram. Preferi transgredir "por
dentro", como um ratto dentro do queijo, mantendo as estructuras formaes
(ainda quando experimentaes) e introduzindo as thematicas mais profanadoras do
genero, ao invez de pesquisar rupturas metricas, rhythmicas ou rimaticas. Mesmo
assim, vez ou outra, acabei commettendo algum peccado escandido, ou
escondido... (risos)
SRS:
É possível ser transgressor sem ser erudito e poliglota?
GM:
Claro que sim. Ha muitos casos de poetas "organicos" que innovam mesmo
sem conhecer as opções estheticas. Os cantadores que primeiro trabalharam as
variações do martello no Nordeste certamente ignoravam si taes ou quaes metros
foram creados por aquella ou aquelloutra eschola européa, mas quebraram padrões
simplesmente ensaiando de ouvido. Ou não?
SRS:
A crítica interna e internacional está em dia com você?
GM:
Na phase do DOBRABIL eu era solennemente ignorado, mas agora a universidade,
tanto brasileira quanto extrangeira, tem me accompanhado, sim. Nesse poncto não
posso posar de irreconhecido. Quem não está em dia commigo é o mercado
editorial, mas não sou o unico a ser preterido em funcção de qualquer tom de
cinza importado ou qualquer ex-blogueiro enturmado. Claro que não me refiro a
vocês como blogueiros e sim à galera apadrinhada pelos patriarchas... (risos
sibyllinos)
SRS:
No seu entender, qual a colaboração (ou não) da internet para a literatura?
GM:
Eu diria que ella occupa, simultaneamente, o espaço da grande imprensa e dos
zines, ou seja, offerece todas as alternativas, inclusive uma de que participo
no momento, mesmo sem ser usuario de cellular: a "twitteratura", ou
"tuiteratura" (como a chama o SESC que a promove), à parte a
fundamental importancia que o computador fallante teve na minha vida de
escriptor cego.
SRS:
O xibunguismo foi uma fase? Discorra sobre sua relação com a poesia nordestina.
GM:
Isso começou por causa da minha amizade e do constante intercambio com Braulio
Tavares desde o tempo do DOBRABIL. Quando pesquisei mais e vi que até o
Laurindo Rabello, nosso Bocage, apprendeu a glosar com um repentista (o Moniz
Barreto), abbracei definitivamente a "poesia de bordel", prima
bastarda do chordelismo e da cantoria. As primeiras anthologias de glosas da
minha bibliotheca (como UNS FESCENNINOS e GLOSA GLOSARUM) foram presenteadas
pelo Braulio, authentico mestre no genero. Mais recentemente, andei pelejando
com Moreira de Acopiara, outro expoente do neochordelismo. Mas a experiencia
mais gratificante foi recyclar a peleja do Cego Adheraldo com Zé Pretinho em
forma de glosas decimaes, quando incorporei a cegueira ao sadomasochismo
lyrico, o que resultou no xibunguismo que vocês ja conhecem.
SRS:
Fale sobre o "Filme para Poeta Cego". Que significação pessoal lhe trouxe?
GM:
Ufa! Nunca mais topo participar dum projecto desses! Só topei porque a proposta
do Gustavo Vinagre era singularmente creativa e opportuna. Foi muito
sacrificado gravar dias a fio, coisa que agora, soffrendo da prostata, eu nem
conseguiria. Claro que topo ser entrevistado para qualquer documentario
convencional, mas actuar no papel de mim mesmo, porem dirigido "de
surpresa" por um cineasta que me faça de cobaya, isso never more!
Felizmente a critica tem comprovado que o Gustavo foi optimo manipulador da
linguagem cinematographica e que meu sacrificio não foi desperdiçado, em nome
do masochismo! Ufa! Mas não me arrependi de nada. O Gustavo mereceu o
sacrificio e ja fallei a elle que deu sorte de me pegar numa primeira e unica
opportunidade...
SRS:
Como percebe as movimentações atuais da sociedade sobre os gays e as multidões
que rondam as ruas? O Brasil despertou mesmo ou são movimentos simulados por
algo ainda não declarado?
GM:
Nada de novo. Tudo é cyclico na historia. Até a dictadura de 1964 começou com
manifestações dos dois lados, o da ordem e o do, digamos, progressismo. Até
Hitler foi democraticamente eleito depois dum período ultraliberal quanto a
manifestações. Tractando-se de jovens, nunca se pode deschartar o modismo
internautico e o costumeiro fogo de palha. O que tem occorrido certamente
entrará para a historia, mas só o tempo dirá quaes consequencias positivas se
podem garimpar dessas mobilizações de godos e visigodos, com ostrogodos
infiltrados. (risos) Sobre isso tambem fiz uma decima por estes dias. Não
resisti quando ouvi no radio que duzentos surdos-mudos tinham conseguido
interdictar a avenida Paulista tanto quanto milhares de estudantes internautas.
Aqui vae:
MANIFESTAS
JUNINAS
Muitos
grupos querem tudo
nos
protestos da Paulista
e
mais este ja conquista
seu
espaço: o surdo-mudo.
Me
animei, mas não me illudo.
só
protesto ou passeata
não
resolve, pois se tracta
dum
esforço sem serviço.
Quanto
ao cego, esse, nem isso
fazer
pode... Eh, vida ingrata!
SRS:
Algum novo livro no prelo?
GM:
Magina! Nem preciso escrever siquer mais uma linha! Depois que parei de
sonetar, mesmo que não faça nenhum verso novo, a quantidade de material inedito
daria para publicar livros desengavetados pelo resto da vida! Ufa! (risos)
Fallando serio, continuo programmando novos títulos para registrar em papel os
sonetos ineditos. Os proximos formam a serie SONETOS DE... cujos volumes vão
sahindo daqui a mezes, sendo os primeiros os SONETOS DE BANDEIRA, SONETOS DE
BOCCAGEM e SONETOS DE PESSOA. Claro que rirei si confundirem nomes proprios com
substantivos communs... (risos e mais risos)
Acompanho o trabalho de Glauco Mattoso desde os tempos da revista Chiclete com Banana, do Angeli, ícone dos quadrinhos tupiniquins nos anos 80. Acompanhei de perto a sua evolução como poeta e o seu perfeito domínio da técnica de versejar, inclusive no universo do cordel. Glauco conhece mais sobre o cordel do que muitos poetas nordestinos. Parabéns ao blog pela entrevista.
ResponderExcluirARIEVALDO VIANA
São finas peças literárias as respostas de Glauco na entrevista. Os trocadilhos impagáveis, a erudição, o humor refinado, uma aula de poesia e de vida. Cumprimentos ao grande Mattoso.
ResponderExcluirO romance Eugênio Oneguin foi traduzido direto do russo, em sonetos, pelo diplomata cearense Dário Moreira de Castro Alves. Existe também um filme homônimo que serve bem como primeiro contato com a obra do célebre poeta Alexandr Pushkin. Uma curiosidade sobre Pushkin são suas origens africanas, em semelhança ao autor de O Conde de Monte Cristo.
ResponderExcluirTodo versejador um dia teve a curiosidade de perguntar a um sonetista como Glauco Mattoso por onde se começa, ou por onde ele começa um soneto.Sua resposta foi surpreendente, como sua própria obra, principalmente para quem já andou metendo, bem ou mal, algum palito na gaiola de Petrarca
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