sábado, 8 de dezembro de 2012

HISTÓRIAS DE IDAS E VINDAS

Francisco de Assis de Freitas*

Beirando os 21 anos de profissão, posso falar que sou detentor de alguma experiência na área em que trabalho, já tendo participado de muitas ocorrências, efetuado a prisão de inúmeros infratores, assim como também consegui resolver diversas pendengas em ocorrências simples, brigas de vizinhos e discussões por motivos banais, que sem a intervenção de terceiros, possivelmente terminariam em tragédias manchando de sangue as manchetes policiais – além de ter visto a morte cara a cara.
Algumas dessas ocorrências podem ser chamadas de cômicas e não fariam feio a qualquer programa humorístico caso viessem a ser dramatizadas por atores. Algumas se passaram em Canindé, umas em Hidrolândia e Santa Quitéria, e poucas em Fortaleza, quando servia no Batalhão de Choque, onde havia figuras ímpares que renderiam boas crônicas pelo inusitado de episódios de que foram protagonistas. Outras, ao contrário, são episódios de extrema violência e falta de humanidade por parte dos atores principais, além de infortúnios que deixaram sequelas eternas em parentes de vítimas. Assaltos, homicídios, lesões, acidentes, afogamentos e estupros... são diversas as ocorrências policiais; além do tráfico de entorpecentes, um mundo à parte, que sempre traz histórias de tristeza, por parte dos usuários e violência do lado dos traficantes, os quais não permitem concorrência ou dívidas, sendo estas resolvidas com a morte de desafetos e devedores.
E como eu falei sobre episódios cômicos e tráfico de drogas, lembro-me de uma operação policial aqui em Canindé em um bairro periférico, e da qual não participei (apenas ouvi comentários sobre o resultado), com a clara intenção de cumprir mandados de busca e apreensão, já que as investigações davam conta de que havia uma grande incidência de tráfico na região. A operação contava com um bom aparato logístico, várias viaturas, um efetivo razoável e até alguns cães farejadores do canil da polícia militar vindos de nossa capital. Em uma das casas visitadas pelos homens da lei, um conhecido infrator vendo os policiais com o mandado em mãos, não teve opção senão permitir a entrada deles e acompanhar a busca, no que dizia estar sem medo, pois nada devia. Ocorre que cães são animais de faro apuradíssimo, chegando alguns especialistas a falarem que eles enxergam com o nariz; os da polícia são animais treinados para farejar drogas em locais mais inusitados, como em caixas com fundo falso e disfarçadas com o odor de café. Ao penetrar na casa humilde do traficante, os policiais levaram também um cão farejador e o animal ficou eufórico quando próximo de uma parede. Os policiais desconfiados vasculharam a parede com mais afinco e descobriram buracos camuflados onde havia certa quantidade de drogas escondida. O traficante surpreso apenas olhou para o cachorro e disse com sua gíria característica: “meu irmão, mas que cachorro cabueta”. Foi preso mais uma vez e hoje, em liberdade, é um dos poucos exemplos de um criminoso que envelheceu.
 Atualmente, depois de dezessete anos servindo no 4º BPM, sirvo no Batalhão de Policiamento Comunitário, mais conhecido como Ronda do Quarteirão, desde 2009, e hoje presto serviço em Santa Quitéria, cidade que me deu acolhida desde 1993 e de onde tenho inúmeros amigos. O trabalho lá não difere muito do que faço aqui em Canindé, uma vez que basicamente nosso cotidiano profissional resume-se em fazer o policiamento ostensivo, atribuição constitucional da Polícia Militar, na zona urbana de Santa Quitéria em duas viaturas dotadas de câmeras de vídeo e GPS, rádio transceptor, de onde recebemos informes de uma central de comunicações e um telefone para onde as pessoas ligam quando necessitadas, além de fazer visitas comunitárias. O trabalho começa ainda em Canindé, quando pego minha mochila de viagem e desloco-me ao quartel do 4º BPM para pegar o armamento e então vou para a estrada pegar carona – tanto na ida quanto na volta apelo para a solidariedade de viajantes, já que a linha de ônibus que faz o trajeto sai por volta das dez da manhã e o serviço requer que estejamos mais cedo na cidade, e nem sempre tem vaga para irmos sentado.  Por conta disso é que a carona se torna conveniente e nos traz a oportunidade de conhecer pessoas de vários níveis socioculturais; às vezes nos deparamos até com estrangeiros que estão longe de suas pátrias e para cá vieram em busca de oportunidades.
Não posso negar que certo receio paira quando o assunto é viajar com pessoas desconhecidas, pois corro o risco de me deparar com elementos de índole criminosa ou mesmo uma quadrilha que esteja planejando alguma ação delituosa. Entretanto, sempre trago Deus no coração e peço que ele me leve e traga em paz e segurança para o seio da família e nunca me ocorreu em tantos anos que viajo algum incidente ou infortúnio na estrada; apenas uma vez fiquei no meio do nada por conta do motorista ter se descuidado no tocante ao abastecimento e outra vez um caminhão quase pega fogo devido a um curto-circuito, mas o motorista foi rápido e conseguiu debelar o incêndio. Geralmente as caronas que pego são de motoristas solitários, em sua maioria vendedores, que algumas vezes viajam em dupla, outras são casais e famílias pequenas, e momentaneamente invadimos sua privacidade. Em algumas ocasiões é possível que se estabeleça um bom diálogo entre motorista e passageiro; muitas vezes a vida de um policial parece um mundo distante para estes viajantes e eles começam a nos questionar sobre a rotina, o que pensa um policial, e às vezes se surpreendem com a resposta. Algumas vezes, eles também têm uma opinião formada sobre a legislação vigente, achando que a punição aos infratores é muito branda e que os grupos defensores dos direitos humanos apenas defendem bandidos, ficando o cidadão idôneo e o policial militar e sua família, que ocasionalmente são vítimas de atos de violência, abandonados à própria sorte; chegando alguns a ter uma opinião dividida sobre o assunto, achando que os grupos de direitos humanos deveriam defender apenas os “humanos direitos”.
Nos últimos dias após a Festa de São Francisco de 2012, algumas das caronas que peguei me chamaram mais a atenção por conta da origem dos motoristas. Indo para meu destino outro dia, dois homens de uns trinta anos aproximadamente me deram carona e disseram estar indo para a cidade de Crateús, onde lecionam em uma escola particular. Um brasileiro e um americano, lecionando espanhol e inglês respectivamente. O americano surpreendeu-se com a paisagem ressequida de nosso sertão e ouvia as explicações em português que seu amigo dava sobre algum assunto que viesse à tona, como política ou geografia, e este vez por outra fazia comparações de seu país com o nosso. Viajei também com um médico cubano, doutor Noel, bastante espirituoso e simpático, que presta serviços em Canindé e Santa Quitéria. Conversamos durante toda a viajem, e ele me relatou o quanto é difícil ser cubano devido às consequências que o bloqueio econômico imposto pelos Estados Unidos deixou em seu país desde a década de 1960; as dificuldades de um compatriota seu conseguir tirar um visto de entrada para qualquer país legalmente, mas enalteceu as conquistas da revolução de 1959, como saúde e educação para todos, saneamento básico, dentre outros, apesar da repressão, salientando que se sente triste por seu povo não ser livre para ir e vir para onde quiser, como nós brasileiros, e seu país, pobre em recursos naturais, não conseguir obter todos os produtos que necessita para desenvolver-se, como o aço, por exemplo, precisando importar quase tudo e encontrando gigantesca dificuldade para suprir suas necessidades; para ele, os cubanos literalmente, usando uma expressão nossa, ‘’se viram nos trinta”.
Outra carona que peguei foi com um espirituoso ancião, advogado bem sucedido, fã de Luiz Gonzaga, com seus 70 anos bem vividos, tendo morado na cidade maravilhosa por muitos anos, aonde chegou analfabeto e trabalhou em diversas profissões, como porteiro e zelador, e ter trabalhado, com muito orgulho, com bem enfatizou, antes de ir embora durante a histórica seca de 1958, na construção da estrada de Santa Quitéria a Varjota carregando carro-de-mão cheio de barro. No Rio de Janeiro conseguiu terminar o ensino médio e depois se formou em direito e retornou há poucos anos para cá. Uma história de superação. São histórias como esta de idas e vindas, que nos deixa o claro exemplo de que para o desenvolvimento pleno de um povo, a educação é pedra fundamental da construção do futuro de qualquer nação.

*PM, colaborador do blog.

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