sexta-feira, 25 de outubro de 2019


HUMBERTO DE CAMPOS – 133 ANOS

Pedro Paulo Paulino

Obra escolhida de Humberto de Campos,
lançada em 1983 pela Opus Editora Ltda
No dia 25 de outubro de 1886 nascia Humberto de Campos Veras, na então cidade maranhense de Miritiba. Autodidata, foi poeta, contista e crítico literário. Mas se destacou como o cronista mais lido na década de 1920 e começo dos anos 30, na imprensa do Rio de Janeiro, para onde mudou-se depois de trabalhar como caixeiro na bodega de um tio, na Parnaíba, Piauí. Menino pobre, órfão de pai aos seis anos, descobriu o talento literário ainda em sua pequena Miritiba que hoje se chama Humberto de Campos. Sua obra completa inclui crônicas, contos, poesia e memórias. Aos 33 anos entrou para Academia Brasileira de Letras. Também com o pseudônimo de Conselheiro XX, assinou escritos que atraíram grande público. Humberto de Campos foi um dos escritores brasileiros mais lidos em seu tempo e suas obras tornaram-se presentes nas bibliotecas de todo o País, algumas sendo adotadas em escolas públicas. Sua notável popularidade e identificação com o espírito nacionalista consagraram-no também na política, elegendo-se deputado federal pelo Maranhão. O estilo conservador de escrever, embora numa linguagem bem acessível e dinâmica, entrou em confronto com os ditames da Semana de Arte Moderna de 1922; mesmo assim, conseguiu romper a fronteira entre o velho e o novo na literatura feita no Brasil, e por isso seu nome ainda hoje encontra visibilidade. Segundo Humberto de Campos Filho, que a exemplo do pai seguiu a carreira jornalística, ele foi um homem que sempre viveu modestamente e inteiramente dedicado à vida literária. Essa revelação está na obra escolhida de Humberto de Campos, lançada em 1983 pela Opus Editora Ltda., composta de dez dos 40 volumes da bibliografia completa do escritor maranhense. No primeiro volume, Poesias completas, Humberto de Campos Filho relata detalhes da vida do pai, reconhecido largamente em seu tempo, pelo público e pela crítica, mas em constante preocupação com a notoriedade no futuro. “Eu queria a vida para consagrá-la principalmente às minhas letras; à realização de uma obra que trazia no pensamento. Isso tornou-se impossível. E minhas horas são consumidas, todas, na conquista do pão de cada dia”, desabafa Humberto de Campos em seu Diário secreto. Em 1986, foi lançado pela Universidade Federal Fluminense – EDUFF, o livro O miolo e o pão, em homenagem ao centenário de Humberto de Campos, com estudo crítico e antologia do autor de O monstro e outros contos e um dos artistas nordestinos mais populares da literatura brasileira. O título do livro alude a outra citação de Humberto: “Passou a vida a insistir no comércio mais idiota deste mundo: vendia miolo da cabeça para comprar miolo de pão” (Os Párias). Humberto de Campos morreu no dia cinco de dezembro de 1934, aos 48 anos, deixando mulher e três filhos. Durante muito tempo lutou contra uma doença rara chamada acromegalia, um distúrbio na glândula hipófise. Problemas relacionados a cálculos na bexiga, no entanto, foram a causa de sua morte. Depois de uma operação para retirada dos cálculos, Humberto de Campos passou cerca de um ano urinando através de uma sonda implantada abaixo do umbigo. Depois desse período, uma nova cirurgia foi necessária para retirada da sonda. O pavor da anestesia raquidiana, que o já  traumatizara, fê-lo exigir do médico uma anestesia geral, a despeito dos riscos que corria. Morreu de um ataque do coração enquanto eram feitos os pontos da última sutura. Enxergou com profunda sensibilidade a vida, sendo-lhe poupado ver a própria morte.

CURIOSIDADES DE HUMBERTO DE CAMPOS

♦ Ainda existe na cidade piauiense de Parnaíba o cajueiro centenário plantado por Humberto de Campos e que inspirou uma de suas crônicas mais conhecidas.

♦ A biblioteca de Humberto de Campos, com alguns milhares de volumes, foi vendida pela família do escritor para o governo do Estado do Maranhão, por 40 contos.

♦ Ainda depois de morto, Humberto de Campos foi motivo de grande polêmica. Por volta de 1941, novas publicações assinadas por ele, como “psicografadas” por Chico Xavier e editadas pela Federação Espírita do Rio de Janeiro, ganharam grande popularidade em todo o Brasil, fazendo com que a família do escritor movesse uma ação judicial reivindicando direitos autorais. A família perdeu a causa.

♦ No final dos anos 50, o nome de Humberto de Campos é estampado novamente na imprensa. O anúncio da publicação do seu Diário secreto causa alvoroço no meio intelectual brasileiro. Mesmo assim, seu diário é publicado em fascículos pela revista O Cruzeiro e depois editado em dois volumes.

♦ Na edição de 3 de setembro de 2008, a revista Veja trazia em sua coluna “Radar”, assinada pelo jornalista Lauro Jardim, a seguinte nota: “VENDE-SE UM FARDÃO - Serão leiloados nos próximos dias no Rio de Janeiro o fardão e o espadim da Academia Brasileira de Letras usados pelo escritor maranhense Humberto de Campos. O lance mínimo é de 30. 000 reais – aliás, o mesmo preço de um fardão novinho em folha. A vestimenta tem quase noventa anos e estava guardada desde 1934, quando Campos morreu. Quem tiver a intenção de desfilar por aí fantasiado de imortal não deve perder a oportunidade. Não é todo dia que se consegue um fardão original, até porque a maioria dos acadêmicos é enterrada com seus trajes de gala”.

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RODOLFO TEÓFILO

Humberto de Campos

QUANDO eu conheci Rodolfo Teófilo, em 1906, tinha ele já sua grande barba toda grisalha. Era um homem alto, magro, de rosto fino, que a barba tornava mais longo, e que vivia enrolado em uma sobrecasaca negra, abotoada de cima a baixo. Fantasiado assim de guarda-chuva, trazia, para evitar equívocos, outro guarda-chuva na mão. E eu confesso que, desde que o vi pela primeira vez, senti uma comovida simpatia por aquele homem, ao mesmo tempo que recebia uma impressão funda, e segura, da sua capacidade de sonho e de fé. Um homem que anda de guarda-chuva no Ceará, dispõe, necessariamente, de uma grande força de imaginação.
Era isso nos dias mais ingratos da existência do romancista. Dividido em dois agrupamentos políticos, o Ceará fervia, desde as praias do mar até às chapadas do Cariri, de entusiasmo e de indignação partidárias. As penas dos jornalistas ciscavam, no papel branco dos jornais, pondo à superfície dele, com as paixões próprias, os vícios ou defeitos dos adversários. Sem descer às discussões pela imprensa, Rodolfo Teófilo havia ficado, como eleitor, em oposição ao governo do Estado. O melhor governo é, sempre, no Brasil, o do partido que vai subir. E Rodolfo Teófilo era brasileiro e possuía, como todo brasileiro, espírito messiânico.
Essa definição de atitude custou, todavia, caro, ao velho sonhador. Lente de História no Liceu Cearense, foi removido imediatamente, como castigo, para a cadeira de grego. Debalde protestou ele contra essa confusão, alegando, como coautor da “Bo­tânica Amorosa”, que as raízes gregas nada têm com as dos vegetais. O governo manteve o ato. E Rodolfo Teófilo, que não sabia grego, foi demitido por abandono do cargo, exposto a todas as conseqüências de uma pobreza honrada, corajosa e inflexível.
Para viver, foi fabricar, então, na sua chácara de Cauípe, vinho de caju, cuja fermentação e filtragem aperfeiçoou, e que tomou, no comércio, a denominação de “néctar”. Aquela abelha não fabricava senão mel. Doce de alma e doce de coração, escolheu, para explorar, a mais doce e amável das indústrias. Não sabia grego, mas era um irmão de Aristeu, isto é, do primeiro grego que domesticou abelhas.
Não foi, todavia, na sua indústria, mas no seu apostolado, que o governo cearense passou a atacar o venerando e suave trabalhador. Toda a vez que a seca se manifesta­va no sertão, a companheira da fome era, sempre, a varíola. Farmacêutico, Rodolfo Teófilo chamou a atenção das autoridades sanitárias para a vacinação intensa. A ciência provinciana não admite, porém, insinuações. Só os oposicionistas fazem observações públicas ao governo ou aos seus auxiliares. E Rodolfo Teófilo passou a figurar no índex governamental.
Seu coração não se conformava, entretanto, com a devastação que a varíola fazia no Ceará. Menos para afrontar o governo do que para substituí-lo no exercício de um dever caprichoso, passou a vacinar, por conta própria, nas vizinhanças da capital. Adquiria vitelos, e fabricava uma das melhores vacinas do Brasil, a qual era distribuída gratuitamente pelos médicos locais que a pediam, ou enviada, independente de remuneração, para os Estados vizinhos. O governo do Estado multou-lhe o laboratório. E como se isso não bastasse, o órgão oficial do partido governista fazia contra a vacina utilizada pelo filantropo a mais terrível e desumana das guerras, aconselhando a população que a não aceitasse, porque era venenosa e causava a morte!
Não obstante essa campanha, Rodolfo Teófilo não esmorecia. Com a sua voz mansa, os seus olhos bons, e a sua derramada barba de apóstolo, andava de casa em casa, pedindo licença para premunir a família contra a epidemia reinante. Vacinada a maior parte da população da capital, passou ele, com a mesma dedicação, a exercer o sacerdócio entre a gente do interior. Escanchado em um burro, e levando como bagagem científica apenas a caixa de soro e alguns remédios suplementares, atirou-se para os municípios mais próximos solicitando, de choça em choça, de fazenda em fazenda, de povoado em povoado, permissão para vacinar as pessoas que ali moravam. Os caboclos o recebiam, quase sempre, com acentuada desconfiança, quase com hostilidade. E foi, então, quando, segundo se contava no sertão, Rodolfo Teófilo inventou uma linda história cristã, que teria repetido mil vezes, nos terreiros das cabanas e nos alpendres das casas de campo. Mais tarde, ele contestou, em carta que me escreveu, a paternidade do conto. A defesa foi, porém, tão frágil que me pareceu uma confirmação.
“Há muitos anos, — começava, foi uma grande cidade, capital de um grande reino, atacada pelas bexigas, que mataram quase toda a população. Dentro de pouco tempo estava a cidade quase deserta. Quem não morreu, fugiu, abandonando casa, fazenda, riquezas, tudo. Havia, entretanto, entre o povo, um homem muito bom, que, tendo perdido já todos os parentes, resolveu deixar a terra empestada. Arrumou a sua roupa, e partiu. Assim, porém, que chegou fora da cidade, encontrou-se com uma mulher muito formosa, que puxava uma vaca toda preta, seguida de um bezerrinho, alvo como o algodão. A mulher, ao vê-lo, perguntou-lhe por que fugia. Como ele lhe explicasse, ela lhe pôs a mão no ombro, e disse: ‘Não tenhas medo, meu filho. Volta à cidade com esta vaca e este bezerrinho. Quando chegares lá, tira uma gota do seu leite e, com ele, faze três cruzes em cada braço, em todas as pessoas que se quiserem salvar. Toda aquela em quem fizeres isso não será atacada pela peste’. Aí, a mulher, que não era outra senão Nossa Senhora, desapareceu, enquanto que o fugitivo regressava ao ponto de partida, onde fez o que ela lhe havia dito, e salvou todo o resto do povo. Essa vaquinha — acrescentava o narrador, — teve depois outras crias, e é do sangue e do leite delas que eu trago algumas gotas, para salvar das bexigas os que são filhos de Nossa Senhora.”
O sertanejo, ainda desconfiado do homem, mas confiando em Deus, entregava prontamente o braço, e o braço dos filhos, e o da mulher. E foi por esse meio que Rodolfo Teófilo, sozinho, extinguiu a varíola, até hoje, no interior do Ceará.
E esse benemérito acaba de morrer... Há um homem de menos na terra. Mas há, a esta hora, — se o céu existe, — mais um justo entre os justos. (Destinos)

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2 comentários:

  1. Cumprimentos pela pesquisa biográfica, esses detalhes não são muito fáceis de encontrar. Pelo visto temos um clube humbertiano: César Menotti (junto-me ao tal) e outros colegas nossos que enfileiram na estante pelo menos a obra escolhida desse escritor polêmico. Em O Anjo Pornográfico, exemplar biografia de Nelson Rodrigues, Ruy Castro assinala os entreveros do mesmo com o pai do grande teatrólogo. Viveu pouquíssimo para uma vida tão recheada de epísódios, nem é preciso citar o caso João do Rio. Seu artigo ilustra bem essa tradição. Quanto ao raríssimo Diário Secreto, a fundação Geia do Maranhão lançou segunda edição em 2010.

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  2. Se realmente existem raras pessoas que merecem ser chamados de santos, não obstante as fraquezas que todo ser humano tem, Rodolfo Teófilo foi um deles pelo seu altruísmo, abnegação, o serviço desinteressado com que se entregava a todos sem exceção, o seu amor à ciência e a clarividência e engenhosidade em produzir ele mesmo uma vacina contra a varíola. A descrição de Humberto de Campos é soberba, densa, eloquente. Tudo isso nos faz lembrar que os santos tidos como tais pela população são escolhidos mais pelas suas demonstrações de fé cristã e milagres, que são obra mais da fé de cada um aliada aos grandes poderes de autossugestão, do que pela grandiosidade das obras em favor do próximo, que é uma das empresas mais difíceis, sobretudo quando não reconhecidas.

    Flávio Henrique

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