domingo, 23 de setembro de 2012


A seca de 2012 configura-se como uma das maiores estiagens dos últimos 30 anos no Ceará. Mesmo assim – e felizmente! -, o quadro assustador do sertão em brasa não provocou a calamidade tão comum às grandes secas que afetavam drasticamente a convivência do homem com o semiárido, prejudicando também em grande escala os rebanhos de animais. O desenvolvimento tecnológico e a modernidade que chegaram aos locais mais remotos devem ser os principais fatores que favorecem a permanência do homem no campo e uma vida com um pouco mais de qualidade. Aliado a isso, o assistencialismo pragmático do governo, através dos programas sociais e outros benefícios como pensões e aposentadoria, colaboram para evitar o êxodo rural, até mesmo num período de seca extrema, como agora. A seca, que no passado foi a maior responsável pela expulsão do cearense de sua terra, já é um problema social de certa forma contornado. Mas não nos devemos contentar com isso, porque muito mais providências deveriam ser adotadas pelos governantes em relação a esse problema mais de ordem humana do que divina. Vejamos um documento interessante, escrito no último ano do Império, sobre esse...  

...SECULAR PROBLEMA


No seu livro “O secular problema do Nordeste” (Imprensa Nacional, RJ, 1918), Ildefonso Albano, nas páginas 10-18, apresenta uma relação das fomes, secas e inundações mundiais, das quais o Ceará participa entre os anos de 1600 a 1917.
Em 1888 e 1889 há seca, seguindo-se um ano de chuvas excessivas no Ceará.
Do 2º Livro do Tombo da Paróquia de Canindé (1885-1892), por motivo daquela seca, encontra-se registrada uma Circular publicada a 13 de janeiro de 1889, pelo então bispo do Ceará D. Joaquim. Eis alguns trechos:
“Revmº. Sr. O estado desolador a que se acha reduzida uma grande parte de nossos amados diocesanos; as cenas tristes e comoventes que presenciamos quase todos os dias, vendo chegarem do interior de nossa diocese numerosas famílias acossadas pela miséria e pela fome; a ameaça aterradora da continuação do terrível flagelo da seca; as notícias que nos vão chegando de outros pontos que pareciam livres da devastadora calamidade, todo este conjunto de sofrimentos presentes e de desconfiança do futuro se nos apresenta ao espírito em um só quadro e nos faz derramar lágrimas da mais amarga tristeza. Boa parte de nossos queridos filhos, exaustos de recursos e dizimados de sofrer sem esperança de lenitivo, começa já o êxodo, deixando os pátrios lares com destino às longes terras, onde vão procurar o pão quotidiano ganho pelo trabalho honrado. É triste sem dúvida semelhante quadro! Ao passo que todas as províncias deste vasto Império chamam, convidam, instam aos estrangeiros a virem estabelecer-se em seus respectivos territórios, esta nossa cara Diocese vai se despovoando de dia em dia, trazendo à memória os lamentos do profeta que chorava as desgraças de Jerusalém (...) Ao governo do país cabe sem dúvida o dever sagrado de envolver todos os esforços, de fazer mesmo todos os sacrifícios em ordem a socorrer e a evitar o perecimento de um povo nobre e heroico que faz parda comunhão do Brasil. E, com efeito, alguns meios estão sendo empregados para minorar ou suavizar os efeitos da desoladora calamidade que nos assoberba: deliberou o Governo prolongar as estradas de ferro da Província, construir açudes e poços artesianos, achando-se já em andamento algumas dessas obras; e confiamos todos em que o Governo não deixará perecer à míngua de pão um só dos filhos desta inditosa terra. Além disso, devemos todos desentranhar-nos em caridade para socorrer os nossos irmãos infelizes, matando-lhes a fome e sede e animando-os em seus sofrimentos. É dever de todo homem socorrer ao seu próximo maiormente nas grandes calamidades. (...) Finalmente, ordenamos a todos os sacerdotes deste Bispado leiam na Santa Missa a oração ‘ad petenda pluvia’ (para pedir chuvas). Os reverendos párocos e capelães poderão fazer preces públicas de acordo com o Ritual e as Constituições Sinodais, sendo preferíveis as que vêm com o título ‘Procissões para pedir chuva’. Tenhamos fé e peçamos ao Pai Eterno em nome de seu Unigênito Filho que se digne conceder-nos chuvas abundantes. Residência Episcopal na Cidade de Fortaleza, 13 de janeiro de 1889. Joaquim, Bispo Diocesano.”

...............

Consultando mais uma vez a relação das secas, inundações e chuvas excessivas registradas no livro de Ildefonso Albano (discurso pronunciado na Câmara dos Deputados em 15 de outubro de 1917 e impresso posteriormente), observa-se o seguinte:
De 1603 a 1917 houve no Ceará 43 anos de seca. No mesmo período de 314 anos houve 30 anos de inundações ou chuvas excessivas. As piores secas foram as de 1723-27, 1736-37, 1744-46, 1777-78 (Seca dos Três Setes), 1790-93, 1809-10, 1816-17, 1824-25, 1844-45, 1877-78 (Seca dos Dois Setes), 1888-89. O século passado começou  com a seca de 1900. As maiores que se sucederam foram as secas de 1915, 1958, 1983. Neste século, a maior seca que testemunhos é a deste ano, que já está na lista das maiores secas dos últimos 30 anos.

(Extraído do jornal O Santuário, nº 1.824, novembro de 1980.)

3 comentários:

  1. O Santuário é uma boa fonte para a história contemporânea local, quiçá a única não congratulatória! Admiro principalmente o período em que foi dirigido por Pe. Neri, nessa época pontificavam os artigos, de saudosa memória, do sr. Francisco Karam. Sempre escritos com fluidez e simplicidade, emitindo opinião sincera ou de preciosa historiografia, momento em que revelava algum conteúdo de seu arquivo pessoal. Espera-se, que, algum dia, alguém possa exumar esse material e transformá-lo em um ou vários volumes, de forma a recuperar essa memória indispensável.

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  2. Quem sucedeu o Pe. Nery, como editor do jornal O Santuário, foi também o jornalista e memorialista Chico Karam. Ainda como colunista, ele mantinha a página "Amenidades", onde se liam variedades e até sonetos. Lembro do Chico Karam, numa área aberta nos fundos de sua loja de fotografia, redigindo o jornal em uma Olivetti portátil. Grande e admirável Karam!

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  3. É possível que alguém possa atribuir a ocorrência da seca de 2012 ao desequilíbrio climático que afeta toda a Terra, como consequência do desmatamento em grande escala da Amazônia e da excessiva quantidade de gás carbônico que a civilização industrial produz sobretudo com seus automóveis, impossível de ser reciclado pelo reino vegetal através da fotossíntese, mesmo porque talvez já não mais exista tantas plantas para darem conta dessa carga de CO2 na atmosfera.
    Todavia, é mais provável que tal raciocínio esteja errado, pois o artigo acima demonstra que em pouco mais de 300 anos ocorreram 43 de seca e 30 de inundações, numa época em que o desequilíbrio ecológico quase não existia.
    Por outro lado, observa-se que não há mais tantas inundações quanto até a década de 70 (lembremos 1974), ou mesmo mais recentemente, em 1984/5, quando houve tanta água nos rios que diversas pontes foram levadas pela enxurrada. Lembro que nos anos 60 e 70 o Rio Canindé era uma beleza, os jovens iam tomar banho na correnteza, pulavam da ponte, pescava-se com tarrafas e ainda se podia admirar a piracema, com uma multidão de peixes tentanto subir as quedas d'água e sendo aparados nas mãos pelas pessoas.
    Uma constatação é verdadeira: o sertão do Nordeste não tem esse clima tão adverso por causa do desequilíbrio ecológico do planeta, tal como outras regiões da América e de outros continentes. A Natureza é complexa demais para ser entendida satisfatoriamente.

    Flávio Henrique

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